terça-feira, 29 de setembro de 2020

Aventura ao São Macário - Viagem de conquistas

São as “provas” dos tempos actuais, ou numa forma mais sintetizada, treinos pós-covid.

De todo o mal que esta pandemia nos trouxe, há que saber aproveitar as coisas boas, e no trail há que esmiuçar ao máximo para aproveitar aquilo que nos faz feliz.

Ainda que tenha demorado algum tempo para dar início a este tipo de aventuras, não podíamos ter começado de melhor maneira. A ideia era simples, juntar o máximo de elementos da equipa, conviver, desfrutar, e conquistar o Sâo Macário. O Hugo foi “colecionando” vários tracks, pedindo ajuda a outra malta que conhece locais que nos são desconhecidos, e lá foi criando o caminho. Não tinha que ser o exacto, mas mais uma forma de nos guiar até lá. Faltou marcar a data, até que conseguimos definir o dia 16 de Agosto, com arranque pelas 03:00h da madrugada, em pleno centro de Vale de Cambra.

Estava assim lançado o desafio da Aventura ao São Macário.


A Aventura ao São Macário


Se tiverem paciência, aqui vai a minha viagem:

Eram 02:15h, e o despertador tocava, e já eu estava acordado há mais de meia hora. A euforia, e entusiasmo já me tinham posto alerta. Levantei-me e fui dar inicio aquele todo desafio matinal para não me atrasar. Dentro de 45 minutos tinha que estar no centro de Vale de Cambra, que fica a poucos minutos de minha casa.

Fomos 7 que aceitamos o desafio, e encontramo-nos todos, ainda a noite ia a meio, à excepção do Marcos, que iria nos encontrar mais tarde.


Prontos a sair de Vale de Cambra



Conversa aqui, conversa acolá e lá arrancamos. Era ver aquela malta que ainda andava pelas ruas a olhar para nós como se tolinhos fossemos, e talvez o sejamos, mas somos felizes assim.

Havia a consciência por parte de todos que o percurso podia sofrer alterações, devido a não encontrar o caminho, algum troço fechado, falhas de GPS, o que fosse, e que para isso tínhamos que arranjar alternativas, o que só por si podia atrapalhar bastante nas contas no final, mas já lá vamos. Felizmente tivemos bastante sorte com os troços fechados, parecia que aqueles caminhos que sabíamos à partida que poderíamos ter problemas tinham sido abertos propositadamente para nós. Vimos logo isso ao fim de 1 quilómetro, quando entramos num PR que nos leva pelas levadas, aquilo tinha sido cortado naquela semana, e que bem que soube, gosto muito daquele caminho, que já se encontrava a monte há algum tempo. Ainda assim seguimos sempre com algum percalço, uma vez que o frontal era a nossa única fonte de iluminação. 

Até Costa Anelha a coisa fez-se sempre controlada, ainda nem 5 quilómetros tínhamos feito, e já íamos a gerir, caminhar nas subidas, correr/trote nas descidas e planos mediante se podia e conseguia dependendo do piso. A noite estava a entusiasmar todos, por não ser possível ver a continuidade das subidas, e davam alento a correr, daí termos optado por essa forma, além de não irmos atrás de nenhuma vitória. Não conhecíamos outros caminhos, e tivemos que optar pela estrada, ainda que tivéssemos escolhido uma estrada estreita e antiga, não evitaríamos um longo segmento no asfalto, que nos levaria até ao fundo de Açude, e nos reencaminhava de seguida para cima, até Rôge. A noite ainda estava cerrada, e a chegada à barragem Eng. Duarte Pacheco fazia com que o corpo, já quente arrefecesse um pouco.


Paragem por Rôge


Vagueávamos num mato onde a flora era mais densa, ainda que desse para passar, dava para sentir aquela carqueja a roçar nas pernas. Um pequeno contratempo fez com que parássemos ali uns momentos a pensar qual caminho deveríamos seguir. Não demoramos muito tempo, mas foi ali que caímos na realidade que as coisas poderiam complicar-se quando estivéssemos mais longe e em locais que desconhecemos por completo. Mas o espirito era esse mesmo, ser uma aventura.

Já em Função, sabia que as coisas iam começar a moldar, dali só havia um sentido, subir encosta acima até ao Merujal. Iam ser cerca de 4 quilómetros metidos num estradão que nos levava ao alto da Serra da Freita. Foi um momento diferente e entusiasmante, assim que nos distanciamos das casas, onde a escuridão da noite era de al forma dominante, que os frontais eram a nossa única esperança. O céu estava estrelado, era um espetáculo cada uma daquelas luzinhas espalhadas acima de nós. Estava a gostar, andava à frente, vinha para trás, metia-me no meio, todos nós fazíamos um pouco isto, de forma a irmos acompanhando uns aos outros, e entreajudando.

A primeira aldeia da Freita foi também local de primeiro abastecimento, rondavam os 15 KM, e tivemos direito aos primeiros alimentos mais consistentes ao final de algum tempo. Os abastecimentos tinham sido programados antecipadamente, e iriamos ter ajuda do Fernando em cada um dos pontos, somente neste do Merujal, e dada a madrugadora hora, o Paulo havia conseguido uma garagem para termos a nossa comida (o meu muito obrigado ao Hélder).


Era para ser feito, mas não deu :D

Estivemos ali um pouco mais de tempo que o normal num abastecimento de qualquer prova, o que fez com que arrefecesse, assim que venho para a rua, noto isso, com um bater de dentes constante. Imediatamente visto o impermeável e vou-me mexendo para voltar a aquecer. Estando enfiado na aldeia, as casas impediam de ver o nascer do sol atrás da serra, assim tentamos apressar o passo para tentar vislumbrar o que fosse possível.


Amanhecia no alto da Freita.

Nos entretantos já o Marcos havia comunicado a dizer que já vinha ao nosso encontro, que acabamos por combinar o encontro em Albergaria da Serra. Apanhamos o PR15, que nos levaria exactamente ao centro da aldeia, já sob os primeiros raios de luz. Segui com o Fábio, logo após a aldeia da Mizarela até ao ponto de encontro, e aguardávamos assim o resto do grupo. Estávamos com 20 quilómetros percorridos, e a sentir-nos bem, satisfeitos, não perdemos muito tempo e prosseguimos caminho. Ainda eram zonas que conhecíamos, e o terreno permitia alguns abusos, assim intercalava uma corrida mais rápida naqueles trilhos que parece que nos imploram para correr, com alguma caminhada ou trote em subidas.

Em Pedras Boroas iria dar início a um caminho que havia percorrida uma única vez, nos 65KM do UTSF, que nos levava a Gestoso, onde combinamos com o Fernando para o nosso 2º abastecimento. Foi ali o nosso primeiro e real problema com o caminho, não encontramos, ou fugimos do estradão, e andamos ali um pouco perdidos, no meio de toda aquela vegetação rasteira que as pernas querem negar para não ficarem “riscadas”. Fomos seguindo num caminho improvisado em busca do estradão correcto, e após alguns minutos ali estava ele. Dali foi sempre a correr até ao abastecimento, que havíamos combinado às 07:30h, não tendo falhado por muito, apenas uns minutos.


De regresso ao caminho

A descontração nos abastecimentos era notória, ninguém se preocupava com ser rápido, a brincadeira era comum por todos, e somente ao fim de alguns minutos é que tínhamos a real noção de nos meter a caminho. Sair dali, implicava voltar atrás umas centenas de metros, e assim o fizemos, retomando assim ao percurso combinado. O planalto não obrigava a grandes esforços, a corrida era mais regular, o sobe e desce era sistemático e fazia-se sem problemas. Ia recordando aos poucos cada metro que íamos percorrendo, e ansiava a chegada de uma descida envolta numa floresta mais densa, para variar a exposição ao céu aberto. Torna-se mais agradável visualmente, e a descida é um convite a abusos para as pernas. Foi sem dúvida momento de recordações, a aldeia de Tebilhão, estava mesmo à nossa frente, mas onde fomos “obrigados” a seguir pela estrada, a levada que conhecíamos, e que queríamos seguir estava coberta de silvas, não havia forma de passar lá, então, optamos por fazer 1 quilómetro sob o asfalto.

O corpo continuava a responder impecavelmente bem, já com pouco mais de 30 KM, e o desgaste ainda a boa disposição ainda reinava. Em contra partida, foi onde começou os problemas para o Roni e Hugo, músculos e tornozelo respectivamente. Nada que não suportassem, mas que traria impacto mais lá para a frente. A descida que nos leva até ao centro da aldeia é rápida, e dali para a frente era continuar a descer até ao rio, e que descida, toda feita ainda em pedra, coberta pelas árvores, é o reviver de outros tempos.


Descontraidos


Chegamos a Cabreiros, e após uma breve paragem para um café, voltamos a entrar no trilho do Caminho do Carteiro, que já seguíamos desde Tebilhão. Arranquei atrás deles, numa descida contínua sem fim à vista, no entanto das melhores descidas que fizemos, num single track cravado naquela encosta. Decidi desfrutar daquela descida até ao final, e esperava lá no fundo pelo resto do pessoal, já o Fábio tinha arrancado, vou passando o pessoal, e só o Paulo acaba por entrar no desafio de “queimar” sola por ali abaixo, pelo menos durante um pouco.

A dimensão daquela descida era incrível, e no final havia uma pequena recompensa que acompanhei com o Fábio, num pequeno riacho do rio, onde pude mergulhar um pouco as pernas, enquanto esperamos todos se chegassem. Se tínhamos ficados deliciados com a descida, a subida que se seguia não ficava nada atrás, fazendo relembrar o trilho dos incas, numa encosta, onde vislumbrava-se colinas no lado oposto, e os vários poços e cascatas do Rio de Frades no fundo daquele vale, sendo vertiginoso a vista.

O trilho até ao rio







Estava a ser uma caixa de surpresas, e a chegada a Rio de Frades, foi outro momento de admiração, efectivamente ficamos rendidos, com a beleza do local. Admiração também estava a ser reciproca por parte dos aldeões, sempre que perguntávamos alguma coisa relativamente ao caminho, havia sempre a pergunta para onde íamos ou de onde vínhamos, e a reacção era de espanto, o que de certa maneira nos fazia sentir orgulhosos.


Rio de Frades


Na saída de Rio de Frades houve um percalço, não seguimos correctamente o caminho, tendo andado ali um pouco à deriva até encontrar novamente o trajecto, sobe e desde em estrada, até então encontrar o trilho que nos levaria até ao fundo de todas aquelas serras, mesmo para o leito do rio Paivô, que é percorrido também no UTSF na prova dos 100 KM.

Era a minha primeira experiência em travessia de rio durante vários quilómetros. Foram 3 quilómetros, mas em marcha lenta, enquanto houvesse areia e pedras pequenas no fundo, a progressão era exequível, quando as rochas já desgastadas pela corrente do rio surgiam, era o problema, um pé em falso era uma queda garantida.

Ora o leito do rio, algo mais cheio do que é suposto nesta altura, ainda nos cobria a maioria das pernas, havendo partes em que podíamos ficar submersos. Quando pisamos as rochas, o cenário era mais desconfortável, sendo que a queda podia ser feia.


Rio Paivô - O primeiro contacto


Foi provavelmente os 3 quilómetros mais longos desde que corro, que apenas ficaram mais ricos quando vejo na estrada a minha família, que já se havia encontrado com o Fernando, e nos aguardavam ali em cima.  Era hora de abastecer e de recuperar algum tempo, estávamos bastante atrasados, e o caminho que faltava não iria facilitar.

Foi uma rápida passagem por Covelo de Paivô, e entrar numa encosta que nos levaria directamente a Regoufe.

Foi subindo gradualmente, ainda que acessível, foi-se misturando corrida com passada larga, mas o avanço que íamos dando entre nós já notório, e tivemos que aguardar uns minutos para agrupar. E foi em Regoufe que as coisas começaram a complicar-se seriamente.

O Hugo e o Roni estavam em sérias dificuldades tanto o tornozelo, como o joelho haviam piorado, e dali para a frente seria para estragar ainda mais, e a opção de ficar ali era a mais válida, e que dadas as circunstâncias foi a mais acertada. Restava ligar ao Fernando que nos aguardava em Covas do Monte, para voltar atrás e buscar vir buscá-los, o problema era que ali não havia rede, foram tentativas de todos os telemóveis, mas nenhum conseguia efectuar a chamada, até que ao final de alguns valentes minutos, o Paulo lá conseguiu, ainda que com alguma dificuldade, mas entendeu a mensagem.





Não fazia sentido ficar ali, combinamos prosseguir, só pensava em avançarmos, e não perder mais tempo, já pensava naquilo mais como uma caminhada do que propriamente uma corrida. Tinha consciência desde início que facilmente podíamos ter falhas no caminho, mas felizmente até ali sempre encontramos solução, e o facto de estarmos tranquilos de início em relação a isso, agora com tanto esforço já acumulado, já não era bem assim.

Sem o Hugo, por ser o traçador do percurso, e quem nos vinha a orientar praticamente desde o início, agora estávamos entregues apenas ao meu telemóvel onde tinha o track, mas a bateria já estava a chegar à reserva, o que me estava a fazer comichão naquele momento.

Vimo-nos desgraçados para sair dali, simplesmente não dávamos com o caminho, e após descobrir um troço que aparentemente nos levava pode onde queríamos, lá seguimos.






A verdade é que ele nos levava onde nós queríamos, à estrada do Portal do Inferno, contudo umas centenas de metros cá traz, o que nos obrigaria a andar pela estrada até à descida para Covas do Monte. Foi ali que comecei a ferver, estava profundamente irritado, a situação começava a enervar-me, e não conseguia acalmar, e só demonstrava isso correndo numa secção onde devia caminhar. Não estava a ver grandes soluções logo que perdesse bateria, e não tinha a powerbank comigo.

Talvez aquelas imensas horas ali já me estavam a dar conta da cabeça, e via as horas a passar e nós cada vez mais atrasados. Não era por mim, mas sim por todos os que nos acompanhavam, que estavam ali “pendurados” por nossa causa, e isso é que me estava a incomodar. A chegada ao portal do inferno, deu para cruzar com a minha mãe e o Fernando que já tinham vindo buscar o Hugo e Roni, o que aproveitei para pegar de imediato na powerbank para pôr o telemóvel a carregar.






Arranquei de imediato, ao encontro do resto do grupo que já se aproximava da descida arrebatadora.
Assim que ali cheguei fiquei a admirar aquela descida. A dimensão daquilo congelou-me ao solo por breves momentos vendo a aldeia, onde tinha que chegar, mesmo no fundo daquelas serras todas. Acordei, olhei para o lado, e já eles desciam, enquanto eu ficava boquiaberto com o que ainda tinha que atravessar. Meti-me a caminho, e logo percebi que dali ia sair com dores se não me controlasse. A descida era ingreme, repleta de xisto, pedras cravadas na terra e solta, era descer e esperar não pertencer à grande probabilidade de queda.

Segui mesmo até ao fundo, local onde já estava o Fábio à nossa espera, e ali aguardei pelos restantes. Enquanto descia, não fui confirmando se estava enquadrado com o track, o que só validei quando já estava na aldeia, erro crasso que nos fez desviar por completo da trajectória.


"Aquela serra ali é que era fixe para subir"


Seguimos por um caminho de cabras, enquanto atravessávamos a aldeia, à procura do melhor caminho para voltarmos ao original. Uma das mudanças do caminho que era para ser feito inicialmente, foi para 2 segmentos, conhecidos como “O caminho do morto que matou o vivo”, e “O monstro da Pena”, ainda com passagem pela Aldeia da Pena. Ora isto, seria a cereja no topo do bolo, uma vez que eram 3 sítios que tinha curiosidade em passar. Contudo, não passou de uma miragem, uma vez que mesmo após alguma insistência minha em seguirmos um caminho que nos levaria onde queríamos seguir, acabamos por seguir em direcção oposta, o que nos desviou por completo do caminho.





Foi ali que o meu psicológico começou a tramar das suas, enquanto via o topo do São Macário ao longe. Estava desiludido por não estar a correr conforme planeava, por não fazer dos trilhos que mais me cativava, e por ter que seguir um caminho totalmente distinto e sob o asfalto. Voltar para trás, seria acrescentar mais quilómetros, tardar ainda mais a chegada o que também não era benéfico para ninguém. As imensas horas ali, fizeram com que o desalento e a má disposição se metessem à frente de tudo e interrompem-se um momento de felicidade que até ali transportava.

Pôs-se várias hipóteses em cima da mesa, em como abandonar ali tudo, mas dali até ao São Macário, eram apenas 5 quilómetros por estrada, que se faziam bem. Já sem o mesmo sabor fizemos e terminamos, ao fim de 60 KM, junto de um grupo espectacular que nos aguardava já há largas horas.


A garra lá ao longe!


Nem tudo foi mau, foi uma experiência que fica na memória, foram momentos únicos, e uma superação fantástica. Reconheço que tivemos bastante sorte com os caminhos estarem de fácil acesso, praticamente limpos, falhou-nos sim a orientação por falta de conhecimento daquela zona. O final não foi o que quis, nem o que desejava, contudo há que tirar o melhor daquilo, que foi a conquista daquele ponto longínquo de casa, o São Macário, atravessando as serras da Freita e Arada, e sem dúvida o convívio de toda a malta.


São Macário conquistado


Fiquei fã deste tipo de aventuras, e daqui surgirão mais, tudo com um propósito que ainda não sei se irei conseguir, mas lá estarei para tentar. Mais para a frente o saberão.