quinta-feira, 18 de julho de 2019

ViverArões - Um pleno


Não há nada como correr em casa.
Com o crescimento do trail, e a organização de inúmeras provas durante o fim-de-semana, dá para todos os gostos e feitios. Desta vez optei por um mais “caseiro”, uma prova, que até aqui era mais um “free trail”, sem qualquer tipo de competição, incorporado nas festas da terra, mas que agora optaram por cronometrar, e dar algum crédito a quem o quisesse.
A equipa Vale Correr, foi formada à relativamente pouco tempo, na qual eu também estou incluído, e quisemos lá estar, no trail ViverArões 2019, e queríamos esse crédito.
A ideia era simples, não sendo uma prova que abrangesse um leque muito grande de atletas, muito menos de elite, iríamos tentar dar o nosso melhor para ver se conseguíamos um pleno no pódio, afinal tínhamos grandes hipóteses para isso.

De facto o leque era mesmo muito pequeno, éramos 30 no total, atrás de um improvisado pórtico aguardando pelo sinal de partida.
Estava mesmo na frente junto à restante equipa, o Fábio, João Rodrigues, Marcos e Paulo, aguardando o tiro de partida. Como era tudo feito sem grandes cerimónias, também o arranque foi diferente, em coro, fizemos nós a contagem decrescente.
Saí na frente, eu e o Fábio, seguidos por um outro rapaz e o João Rodrigues.
Dali à subida que terminava ao fim de 5 quilómetros, ia na conversa com o Fábio, combinando o objectivo e como o poderíamos o fazer. Sabíamos que à partida ele ganhava a prova com facilidade, mas que iria connosco durante o percurso, salvo se alguém ultrapassa-se ele seguia atrás para tentar conseguir o primeiro lugar.
Mal inicia a subida ainda em estrada, eu e o Fábio isolamos, sendo pouco depois alcançados pelo outro rapaz que se aventurava a trepar continuamente aquela encosta que nos ia distanciando de Arões.

Pórtico improvisado. Créditos: Organização

O Fábio seguia aquilo que tinha dito, seguiu o rapaz, acabando por o ultrapassar e continuou rumo ao topo.
Eu por outro lado, deixei-me ficar, ainda ia tentando aquecer, o recente arranque sem nenhum aquecimento, a juntar uma subida bem inclinada, causara um descontrole na respiração, sem sinais de melhoria. Somente quando comecei a estabilizar, voltava a aproximar, e acompanhar o Fábio a poucos metros atrás.
Uma pequena distracção originou a uns 200 metros a mais, juntando o João Rodrigues ao grupo, formando um quarteto.
Rapidamente nos dividimos, ficando para trás com o João, enquanto o rapaz segue incansavelmente o Fábio, pelo menos até ao quilómetro 2,5, quando voltamos a aproximar e a ultrapassar.
A subida mantinha-se, dali até aos 840 metros de altura, após cerca 350 metros de declive positivo. 

A aguardar o tiro de partida. Créditos: Organização


Seguia-se uma descida, toda empedrada até à aldeia da Felgueira, o nevoeiro estava mais acentuado, arrefecendo um pouco o corpo que já esquentava com a recente subida. Eu e o João, acabávamos por ficar sozinhos, num ritmo mais abusivo sempre a descer ora em estradão, ora por trilhos mais empedrados.
Conhecia aqueles caminhos, por já os ter feito no Freita Skyrunning, embora em sentido contrário, daí o abuso na velocidade, e da falta de atenção às fitas, que mesmo assim as achava muito distanciadas dando a sensação por vezes de estarmos perdidos. Prova disso foi termos encontrado o Fábio pouco depois fora do trajecto, que acabava por se juntar a nós.
Seguíamos os 3 na conversa, e num ritmo mais descontraído, por uma levada que nos levaria aos trilhos mais engraçados da prova, junto ao rio, entre velhos moinhos sempre envolta de uma floresta cerrada e verde.
A longa descida, com cerca de 4 quilómetros, terminava assim que chegávamos à aldeia de Cabrum, onde se metia uma ligeira subida, por entre as casas, campos e levadas, até ao abastecimento. Num pequeno descampado, onde o sol já brilhava, estava um dos reforços que mais adoro. Tudo caseiro, e com as iguarias daquelas aldeias que dão gosto de saborear.
Não ficamos muito tempo, mas ainda fiz questão de aproveitar aqueles breves minutos para ingerir o mais que conseguisse.

Créditos: Organização
Seguia-se novamente a descida, por entre casas, mas uma vez mais, estava confuso, em adivinhar o caminho por falta de fitas.
O cenário mantinha-se, assim que percorríamos um estradão, tenho que parar para procurar as fitas, sendo que às vezes tinha que seguir um pouco às cegas, até então ver a próxima fita.
Eram vários metros até encontrar a próxima fita, e estando assim tão espaçadas, acabamos por fazer uns 500 metros a mais à procura de uma fita que não existia. Estávamos novamente perdidos. Automaticamente abrandamos, e voltamos para trás à procura da última fita. Mais 500 metros, e ali estava ela, mas sem sinal de outra que desse para continuar o caminho.

Créditos: Organização
Enquanto a procurávamos, e numa descida um pouco escondida vemos que seria por lá que deveríamos seguir caminho, surge de novo o rapaz, que acaba por ver que nos tínhamos perdido e aproveita para tentar se distanciar de nós.
Naquele momento sentia-me injustiçado, e com vontade de deitar a toalha ao chão. A única coisa que valia ali era o trilho que nos levava até ao rio, feito à mão tricotando até ao leito do rio, uma vez mais com falta de fitas, lá acabamos por encontrar o caminho, que nos levaria para a última subida. O Fábio voltava a cerrar os dentes, e seguiu, desta vez a todo gás para terminar aquilo, eu e o João, que se tinha aleijado ficamos um pouco para trás, enquanto o rapaz tentava novamente fugir de nós. Controlamos a subida, não sabíamos se era extensa, nem se iria ter muita inclinação ou não, mas teríamos que a controlar, e só dessa forma conseguimos aproximar e ultrapassar de novo.
Assim que o fizemos, não demos mais hipóteses, foi prego a fundo em rumo à meta.
Íamos frustrados, e novamente com dificuldades em encontrar fitas, e por pouco não houve mais um engano aquando a chegada de um portão fechado seguido de um muro com cerca de 1,50 metros de altura, não fosse o João a reparar nas fitas. Não tentamos abrir o portão, avançamos o muro e desatamos a correr, os trilhos eram bonitos, single tracks, misturados com caminhos antigos, e alguns riachos, mas aquela sinalização estava a deitar tudo a perder.


Créditos: Organização
Foi assim até Arões, onde finalmente cruzamos a meta, e surpreendentemente em primeiro lugar eu e o João. O Fábio chegou logo depois, tendo uma vez mais se enganado, mas agora no muro, não tendo visto as fitas e seguido em frente.
Reconhecemos que havia falta de sinalização, e indicamos isso mesmo à organização, sendo injusto para o Fábio, acabando por ceder o lugar a ele.

A opinião foi unanime, percurso espectacular, abastecimento impecável, mas falta de sinalização, ou mais reforço nos cruzamentos ou mudanças repentinas de direcção, que valeu a muitos enganos durante o caminho. Contudo, nem tudo foi mau, e o objectivo de preencher o pódio com as três primeiras posições tinha sido conseguido.

Um pódio, em pleno. Créditos: Organização


terça-feira, 9 de julho de 2019

Ultra Trail Serra da Freita 65KM - Brutalidade


É um abuso. É de “Bradar aos céus” o “martírio” que passamos para fazer esta “besta” de prova. É a melhor analogia que posso fazer para descrever o Ultra Trail Serra da Freita (UTSF). Não é para qualquer um, e não me identifico como mais um, porque ninguém dali sai com sentimento de vitória, mas sim de sobrevivente. Porque a vitória é sempre daquela serra, a imponente Freita que nos vai triturando em mil pedaços, e se lhe apetecer, só se lhe apetecer, lá nos deixa continuar o nosso caminho.
É mágica de facto, tem tanto de bela como de dureza, desta forma não deixa ninguém indiferente.
Foi a prova mais insana que fiz até ao momento, se julgar pelo tempo decorrido, como pela distância, como pelo desnível. Já nem menciono o terreno, porque esse, bem esse … é de triturar pernas, pés, tornozelos…

Créditos: Organização

Eram 6 horas da manhã quando a brisa matinal ainda ocultava o forte calor que estava por vir. Estava em silêncio o pavilhão onde nos organizávamos para um breve briefing, como fosse uma introspecção de cada um daqueles que se iam aventurar para os 65KM ou 100KM de pura dureza pela Serra da Freita.
Não me manifestava, nem parecia tão perdido em pensamentos de como seria, ou como iria fazer, aquela que ia ser a provavelmente mais louca de todas as que fiz até ao dia.
Talvez pela ainda presente sonolência do meu corpo, que ainda preferia estar confortavelmente deitado num colchão e descansar, invés de ali estar a preparar-se para se derreter em 65KM de distância em pura serra.

O nosso briefing. Créditos na foto

Segui toda aquela gente até à estrada principal, local onde se dava a partida, e onde pelo terceiro ano consecutivo marcava presença.
Não havia pressas, nem tempos a cumprir, apenas desfrutar e objectivamente chegar ao final sem mazelas, e com sorriso na cara, esse sim era a única coisa que queria cumprir.
Assim me juntava com a Márcia, Fábio e Hugo junto ao final do pelotão, tínhamos tempo, mais que tempo, e mesmo após Moutinho ter dado o sinal de partida, via-se muitos que partilhavam da mesma ideia, não entrando em euforias do momento.
Nada de novo na primeira ascensão ao alto da serra, um segmento de estrada para dividir mais os atletas, até entrar nos trilhos verdadeiramente ditos.
Single-tracks, levadas, terra preta, e muita subida, a mais longa, e mais fácil subida de toda a prova, que serpenteava a encosta da serra do lado de Arouca, até ao Detrelo da Malhada, onde estava o primeiro abastecimento.

A vista do miradouro Detrelo da Malhada. Créditos na foto
O sol, aquela estrela quente, já começara a esquentar todos os que se aventuravam nas encostas despidas de vegetação, ainda nada de grave, mas o dia ainda havia começado há pouco mais de hora e meia.
Já seguia somente na companhia do Fábio alguns quilómetros, e assim nos mantínhamos, no alto da serra, em direcção ao próximo abastecimento.
Não havia caminho no planalto da serra, por entre o piso empedrado e tojo, a preocupação era não colocar um pé em falso, e evitar uma entorse, isto enquanto se tentava identificar o melhor caminho a seguir de fita em fita. Aos poucos a pouca vegetação foi substituída por pedras, num piso bem mais rolante, entre caminhos antigos, num sobe e desce bem ligeiro, mas que ia moendo as pernas.
A diversidade do percurso ia-se moldando ao longo do mesmo, assim que entravamos num bosque, envolto em árvores, e junto ao rio de Frades. O calor que nesta altura já se sentia, ainda que ocultado pelas árvores, e pelo fresco ambiente. Assim que exponhamos o corpo a céu aberto, sentia-se o abrasamento e o ar seco.

Eu e o Fábio. Créditos na foto
A levada que nos levava à aldeia de Tebilhão, era o único refresco que tínhamos, com pouco mais de 1 quilómetro de extensão até finalmente chegar ao segundo abastecimento, já com cerca de 21 quilómetros percorridos. Estava a sentir-me em perfeitas condições, com pernas para andar, sem cansaço, apenas com algumas dores de pés, devido ao piso acidentado ultrapassado até ali e passos mal calculados. Nada de preocupante.
Não descurei na alimentação e hidratação, demorando uns minutos ali, desde que saísse em condições. Sabia que ia ao encontro da “Besta”, e que não me ia desleixar como já o havia feito no Trail de Manhouce, por isso preferia aguardar mais um pouco e só depois arrancar.
Descida até ao leito de um rio, por entre os caminhos usados pelos aldeões para acessos aos campos, e mais uma vez, identifica-se de imediato a diversidade do meio ambiente consoante a progressão, tendo soltado um “espectáculo” mesmo junto ao rio assim que fazia a travessia numa ponte de pedra.

A enorme derrocada de pedras, denominada de “Besta” já se avistava ao longe numa das muitas encostas, faltando apenas atravessar Cabreiros onde se separava os 65KM e os 100KM, e Candal, onde aproveitava para me refrescar. O calor que já apertava algum tempo, aquecia de imediato a água dos flasks, assim que via algum ponto onde houvesse água fresca, era uma oportunidade para a troca, e o prazer de encher o boné de água e refrescar a cabeça de imediato.
Aldeias transpostas ali estava a entrada, de uma maléfica subida.
Já a tendo feito, e lido vários relatos, ainda continuo a não conseguir encontrar forma de a descrever. Tem tanto de bela como de dura. Não dá para correr, nem caminhar, apenas trepar por entre os inúmeros blocos rochosos, procurando sempre o mais regular, e mais seguro. A pequena cascata que a percorre, torna o piso escorregadio, dificultando quando temos que atravessar mesmo por entre a corrente da água. Foram cerca de 42 minutos até ao topo, para fazer quase 1 quilómetro. Uma brutalidade.
Acabei por fazer a Besta na companhia do Ricardo, não o conhecia, mas foi simplesmente impecável comigo (obrigado uma vez mais). Enquanto isso o Fábio aguardava por mim no topo, tentou fazer aquilo o mais rápido possível, e divertiu-se, diz ele.
Havia finalmente conseguido “vencer” a Besta, soube também procurar melhor o caminho para não me desgastar de imediato, como também aproveitar a água para me ir refrescando e abastecendo.

A besta. Créditos na foto.
Virei a montanha e sigo a descer rumo a Bondança, onde estava o terceiro abastecimento.
Estava completamente a céu aberto, descendo a colina até à aldeia, o terreno era duro e implacável para os pés. Estava a senti-los um pouco massacrados obrigando-me a abrandar até mesmo a caminhar. O Ricardo havia ficado um pouco para trás, e o Fábio seguiu e esperava no abastecimento. A água estava escassa, apenas uma pequena reserva numa das garrafas, que não queria desperdiçar sem saber a certeza que o abastecimento estava logo ali.
Parecia-me estar perdido num deserto, à procura de um oásis.
Faltavam cerca de 400 metros, dizia-me um senhor que ali estava a apoiar, para o abastecimento ao fresco. Pareceu uma eternidade aqueles metros, mas de facto era fresco, e abundante em reforço e simpatia. Em toda a prova, os abastecimentos foram impecáveis, completos, e com os voluntários sempre prestáveis.
Já levava 33 quilómetros, não havia manifestação das pernas, só do corpo, sentia cansado e sem forças, e uma indisposição que também não ajudava.
O abastecimento não ajudou no imediato, ainda me arrastei numa daquelas subidas curtas, mas intensas, mas que pelo menos o piso era bem mais regular.

Regular, foi o que fiz durante alguns minutos, caminhar para recuperar, ou esperar que surja alguma energia extra. Só mesmo já próximo do topo, é que volto a reaver alguma energia, e consigo retornar a correr.
Parava novamente, mas para um refresco. Um pequeno ribeiro que percorria no alto, e enchia um pequeno tanque. Foi como renovar as pernas, que iam ser castigadas logo uns metros mais à frente na descida até à aldeia de Agualva.
Mas a pior estaria para vir, uma descida feita por entre as árvores, em terra e raízes à mistura, por vezes verticalmente, onde se ia dizimando as pernas. O trilho era espectacular, mas penoso e duro, um verdadeiro torturador de pernas, que apenas se revigoraram com a chegada à cascata das Porqueiras. Mais uma oportunidade para refrescar as pernas, e encher as garrafas com água fresca.

Créditos: Organização
Estava num local que conhecia bem, já passei ali várias vezes, faz parte do PR Vereda do Pastor, e bastava descer mais um pouco, até à abandonada aldeia das Berlengas, para então depois subir pelas escadas do martírio.
Mais de 800 degraus, todos diferentes, tanto em tamanho, como em altura, de todas as formas e feitios.
Em teoria, por conhecer o que dali vinha, podia ser um factor que beneficiasse a meu favor, de forma a conseguir gerir aldeia da Lomba.
Errei em não tomar um gel antes de iniciar, como havia feito na Besta, e isso fez com que tivesse que parar a meio para recuperar. Não estava a conseguir impor o ritmo certo, sempre que terminava um lanço de escadas, sentia-me preso, e sem grande força para avançar. Acabei por tomar o gel pouco depois de ter iniciado, mas com efeitos um pouco mais tardios do que o que devia ter.

Antes de iniciar as escadas do Martírio.

Chegava à aldeia, pequena e remota no meio daquelas montanhas, onde finalmente podia ter um pouco de descanso e alimentar melhor.
Uma bifana, canja, cerveja e um café, era a ementa ali a meio da última grande subida. Foi o abastecimento onde demorei mais tempo, mas também essencial para recuperar alguma energia para o que se seguia.
A saída da aldeia, é feita pelo asfalto que nos dá continuidade do PR, é íngreme, muito curta, mas inclinada que chegue para lembrar os quilómetros que já levamos nas pernas.
O Ricardo juntava-se a nós novamente, havia ficado uns metros atrás, mas voltava a nos encontrar e acompanhar.
O terreno suavizava assim que se entra no trilho, enquanto contornávamos a montanha por um caminho cravado naquela encosta. Foi assim ate a uma pequena cascata, mais uma entre várias cascatas, ribeiros, rios que fomos apanhando ao longo do percurso, era a vantagem tendo em conta o calor que se sentia. Aproveitava para refrescar uma vez mais, e para uma troca de água nas flasks. enquanto apreciava o tormento que iria ser logo de seguida. Mando mais um gel, para prevenir alguma quebra, e faço-me a ela.

Muito ouvi falar neste trilho, que foi a novidade da edição passada, “Bradar aos Céus”, foi assim apelidada, faz as subidas que fiz até ali parecer uma brincadeira de tão íngreme e técnica que o é.
Deve ter cerca de 1 quilómetro de distância, mais coisa, menos coisa, mas com uma inclinação implacável, sendo quase vertical. O inicio ainda é facilitado com alguns degraus, semelhantes aos que já havíamos passado, mas assim que terminam, é em pura serra dura, quase toda feita com o peso do corpo sobre as pernas, não existe muitos pontos onde possamos colocar as mãos para ajudar, e quando existem estão quentes o suficiente para as escaldar. O trilho é integralmente a céu aberto onde agora o sol bem no alto, torra ainda mais quem por ali ainda anda. Paro em alguns lanços onde o terreno é mais seguro, e aproveito para vislumbrar a vista. É de loucos, tem uma vista vertiginosa, e uma barbaridade de escalada ainda por fazer. O topo parecia mesmo ali, a poucos metros, mas até lá é penoso e um tremendo tormento.
Assim que vejo as escarpas, enterradas na encosta, reconheço o caminho, do FreitaSkyrunning e sei que dali a poucos metros, está feito.

Sentei-me, assim que vejo a torre. Estou no alto do Pico do Gralheiro, falta só subir até ao radar meteorológica, mas ali já não é nada demais, é só mais uns metros.
Feito a passo, aproveitando para uns telefonemas, dizendo onde estou, e que está tudo bem, pelo menos para já.
Consoante vou subindo, volta a indisposição, teria que aguardar novamente que aquilo acalmasse para conseguir reagir novamente, é o que faz ter um estômago de princesa.
Assim que se inicia a descida para a aldeia de Castanheira, ignoro a indisposição e tento correr, vou melhorando até finalmente estar bem-disposto, mais uma má fase ultrapassada.
Já levava 48 quilómetros quando entrava no técnico PR7, é mais uma amostra que nada é pensado ao acaso, quando pensamos que tudo já terminou, surge aqueles caminhos rochosos com um abismo do nosso lado. Último abastecimento em Albergaria da Serra, e faltava a descida.

Radar Meteorológico, no Pico do Gralheiro. Foto do Google
Ainda consegui arrastar sem grande sacrifício até o Merujal, mas morri ali, faltava pouco para começar a descer, cerca de 8 quilómetros, mas não estava com pernas, e dou por isso assim que inicio.
Sabia que era dura, técnica, e mói as pernas, e os já 55 quilómetros, estava a ser um tormento, não dava para correr. As pernas pediam clemência, há muito que tinham erguido a bandeira branca a pedir tréguas. Só a passagem em água fresca aliviava, e dava para correr mais um tempo.
Recordava que assim que avistava um cemitério faltava muito pouco, mas estava a ser doloroso. Dizia ao Fábio e ao Ricardo para seguirem e não esperarem, mas insistiam em ficar comigo, e terminarmos juntos. Faltava pouco para as 12 horas de prova, e ia pelo menos tentar chegar antes disso. Ali estava o cemitério, mais uma descida e volto a correr, mas assim que entro em plano onde queria manter o mesmo andamento, já não dava. Estava derrotado por completo, pensava em tudo o que fiz durante aquele dia, e o que já tinha passado, e apesar do cansaço acumulado estava satisfeito e feliz por me ter superado. Ainda deu para vir um pouco de lágrimas aos olhos.

Cruzava as casas, e ouvia uns berros, era o meu tio, veio ao nosso encontro e acompanhava-nos até ao final. Faltavam uns 500 metros, e parece que ganho nova energia, consigo voltar a correr já junto ao pavilhão, onde está família e amigos à espera, e só depois de os cumprimentar, atravessar a meta.
Foram 11 horas e 52 minutos de prova, quase 63 quilómetros (segundo o meu relógio) de desafio e superação, implacáveis que nos colocaram durante cada metro. É uma prova certamente pensada, e planeada na integra, não existe praticamente os habituais estradões, onde as coisas possam ser mais calmas e rápidas, não. Aqui tudo é fruto de reconhecimento dos caminhos e técnicos onde vai cada um de nós sendo massacrado.
Depois temos a “Besta”, as “Escadas do Martírio” e “Bradar aos Céus”, 3 subidas que exigem resiliência, mas independentemente disso, deixa danos, que se sentem mais à frente.
Por fim volto a agradecer ao Fábio e Ricardo, que me ajudaram em muito durante todo o dia, e aquela malta toda no final que tão bem soube ver ao fim de quase 12 horas.

A meta. Créditos: Organização
Sobrevivi, e somo mais uma ultra, mas a Freita, essa ganhou como sempre.

quarta-feira, 3 de julho de 2019

Corrida Urbana Terras de Santa Maria - Um trail urbano


É a segunda prova do “3Race Challenge”, e segunda vez que participo na Corrida Urbana de Santa Maria da Feira. É um misto, um género de trail urbano, misturando trilhos, com estrada, e passagens por escadas e edifícios.
Recordo que na altura não fiquei com boa impressão desta organização, e após 3 anos supunha que tivessem melhorado.
O percurso tinha sofrido alterações, daquilo que já tinha feito, mas isso não impedia que as várias subidas e descidas, caminhos técnicos não causassem mossa.
 
Créditos: Organização
Tinha cerca de 1 quilómetro inicial para conseguir separar do maior número de atletas, caso contrário, iria pagar quando os caminhos afunilassem. Mal surgiu a subida consegui fazê-lo, abusava um pouco, mas sem esforçar ao máximo,
Regresso ao centro da Feira, e dava-se inicio ao “trail urbano”. Uma escadaria em pedra até ao Convento dos Lóios, atravesso-o, e pelas traseiras, iniciávamos a subida para o Castelo.
Por entre caminhos no jardim, seguimos até às grutas. Era uma passagem curta e rápida, mas por escadas, com degraus uniformes e altos. Ao tempo que subia, sentia as pernas duras, mas assim que volto ao jardim, consigo correr confortavelmente.

Passagem pelas grutas. Créditos: Organização
A travessia do Castelo era mais uma junção de degraus, com maior distância entre eles, já começava a ficar farto de escadarias, mas a tendência era para aumentar.
Saí de rompante dali, e estava curioso em relação à descida. Conhecia aquela zona de outras provas, e a descida que tanto gosto, era uma possibilidade, e foi a realidade.
Em zigue-zague, até ao parque, apenas tinha que ter cuidado com as raízes das árvores, não fosse dar um trambolhão ali.
Assim que a subida termina, seguíamos por um trilho em direcção às piscinas municipais. Foi um choque térmico, parecia ter entrado numa sauna e me empurrassem para um congelador de seguida.

Dali voltávamos à estrada, percorrer a escola pelo interior, e sair uns metros mais à frente.
Seguia atrás de um grupo de 4 atletas, que iam distanciados de mim pouco mais que 50 metros. Sentia um pouco de cansaço, mas ainda tinha força, tentava alcança-los aos poucos, para ter algo que motivasse a continuar a lutar. Reparei que em caminhos mais técnicos, conseguiam ser mais rápidos, mas em estrada ou subidas já recuavam. Aproveitava o asfalto para aproximar, não havia grandes subidas agora, apenas um segmento com ponto de retorno. Distraído ia vendo quem ia à minha frente, a voltar em sentido contrário.

Créditos: Organização
Após o retorno apertei um pouco mais, dali a poucos metros ia sair daquela estrada, e seguir por outra via.
Não demorou muito, e deu para ver que ia conseguir apanhar o grupo, que começava a ficar um pouco disperso.
Era uma subida com ligeira inclinação, mas que foi o suficiente para aproximar-me dos dois primeiros que ficaram para trás. Voltava a descer, mas apenas para recuperar alguma caixa, metia-se logo outra subida bem inclinada, abrandei instintivamente.
Ultrapassava dois atletas, enquanto me aproximava dos outros dois.
Dali ao estádio foi sempre em estrada, mas ao o contornar, por entre as bancadas e escadas, o primeiro desse grupo acabou por seguir, já não sendo possível o apanhar.

Passagem pelo estádio. Créditos: Organização
Voltava à rua, e num ápice estava junto ao local de finalização. Havia mais umas escadas para subir e descer, mas naquele momento pareceu-me que aquilo era apenas só porque apeteceram. Ali consegui apanhar o último atleta daquele grupo, mas não o ultrapassei, deixei-me ir atrás dele.
Ainda falava 1 quilómetro no meu relógio, e a meta estava logo ali. Uma meta despida e sem graça.
Passaram poucos anos, mas várias provas, penso eu, que esta organização já realizou, e já deviam ter experiência suficiente para arranjar as coisas devidamente.
Fiquei mais surpreendido com a organização nos Trilhos Termais, do que ali.
Foi a segunda vez que fiz esta prova, mas acho que há ali muita coisa apenas para “encher chouriços”, falhas do pessoal a orientar no caminho a seguir durante o percurso, e algumas falhas lamentáveis na entrega de prémios.
Nota-se uma falta de interesse em aprimorar o evento, e fazer bem melhor.


segunda-feira, 1 de julho de 2019

Freita Vertical - Subida mágica


Uma parede, uma parede ligeiramente inclinada, com cerca de 4 quilómetros de extensão, é o caminho que temos que percorrer desde a já abandonada, aldeia das Berlengas até ao radar meteorológico no alto do Pico do Gralheiro da Serra da Freita. Eram aproximadamente 800 metros de desnível positivo, mais coisa menos coisa.
Não havia os famosos 1000 metros, para ser denominado de quilómetro vertical, mas não deixava de ser um percurso bem empinado que dava que fazer.
A modalidade de Skyrunning traz destas coisas, provas diferentes do normal, bem curtas, que despertam logo a curiosidade. O ano passado realizado ainda durante a noite, e no anterior dia do Freita Skyrunning, da minha parte, foi colocado logo de lado visto não querer levar um empeno a dobrar no mesmo fim-de-semana. Optaram por fazer a coisa diferente este ano, no mês de Maio, durante o dia, com o evento apenas associado ao Freita Vertical. O restante era em tudo semelhante à primeira edição.
 
O radar no Pico da Gralheira. Créditos: Organização
A aldeia da Felgueira era o ponto de encontro para a centena de atletas que iam participar, divididos em dois grupos com transporte de autocarro, para a aldeia de Paraduça. Esta era o local para a falsa partida que nos levava até às Berlengas onde se dava o início da subida. Cerca de 2 quilómetros feitos em estradão, uns mais rápidos outros mais lentos, mas sem grandes pressas, havia tempo de sobra para chegar mesmo ao fundo daquele vale. É um local que só pela paisagem envolvente vale a pena a visita, envolto de um verde garrido, sobressaindo uma pequena cascata e um pequeno troço de rio. Tudo em redor eram as imponentes subidas da serra, preenchidas pelas árvores e pedras, sem vista sobre os cumes.
Não se podia pedir melhor cenário para aguardar, com partidas cronometradas individualmente, e feitas de minuto a minuto, tinha que esperar que 38 atletas arrancassem antes de mim.
O tempo de espera foi o suficiente para arrefecer, e apanhar com alguns aguaceiros de uma manhã um pouco imprevisível relativamente ao tempo.
 
Enquanto se espera
E continua a esperar
Eram 10:05h e alguns segundos, quando anunciaram o meu nome, chegava-me ao local onde confirmavam a minha presença, e via os atletas das 10:06h a partir.
Fui autorizado a avançar para o local de partida, e enquanto aguardava pela 38ª atleta arrancasse, mostrava todo o material obrigatório. Apesar de calmo, eram minutos que pareciam intermináveis, e em contagem decrescente lá deram a minha partida pelas 10:08h.
Aqueles metros iniciais, colocavam os músculos e a respiração descontrolados, alguns degraus, já degradados e subitamente desaparecem, apenas troços em terra já calcados por quem já havia ali passado.
Aquela parede inicial era aliviada assim que entramos num single-track ligeiramente menos inclinado.
Coloco um pequeno trote, e devido a um início repentino com zonas que obrigavam o uso dos quatro membros, sentia as pernas ligeiramente duras, e a respiração ofegante. Não desgarrei a vontade de querer continuar a correr, e assim apanhava o primeiro atleta que me precedia, mesmo à entrada de uma zona de rochas um pouco afiadas.

Seguia-se uma ligeira descida, até ao leito do rio, que após o atravessar, iniciava-se o segmento, provavelmente mais técnico e triturador de toda a prova.
O uso dos quatro membros era mais que obrigatório, o terreno calcado era a única base de apoio firme que tinha para conseguir subir, as mãos agarravam-se aos troncos e ramalhos das árvores, a raízes, pequenos pedaços de árvores cortadas, tudo o que fosse visivelmente seguro, de forma a distribuir o peso do corpo e não massacrar as pernas logo ali. Não evitei que ficassem como pedras, parecendo que a pele ia rasgar a qualquer momento.
Ao mesmo tempo tentava controlar a respiração, mas o ziguezague constante em piso incerto e inclinado parece obrigar a prosseguir sem interrupções.
Já não procurava fitas de marcação de percurso, não que fossem necessárias, por um caminho bastante previsível sem saída possível, mas também por querer ver onde colocava os pés, sendo que se as procurasse teria que andar sempre de cabeça virada ao céu devido à tremenda inclinação.

Créditos na foto
Recordava da minha passagem ali no mês de Outubro, no Freita Skyrunning, e o quão massacrado fiquei, desta vez não estava a acontecer o mesmo, e estava a conseguir orientar bem as coisas.
Aos poucos o terreno ia ficando mais solido, mais firme e as árvores mais afastadas. Estava finalmente perto o fim da tortura, podia voltar a correr.
Era um trote misturado com alguma caminhada a passo rápido, e a poucos metros à minha frente, começava a ver o meu primo, e uma atleta, que acabaria por ultrapassar.
O problema desta secção até à estrada, onde mentalmente divido esta subida, é que as inclinações são inconstantes, tanto dá para correr, como subitamente me curvo para a frente e caminho.
Das poucas vezes que ergo um pouco a cabeça e espreito o que se seguia vejo a estrada, e alguns elementos da organização, estava finalizado a primeira parte da prova.

Não que as coisas fossem mais fáceis a partir de agora, bem pelo contrário. Não querendo comparar com a escalada no início da prova, mas não fica muito longe disso.
As inclinações são acentuadas a partir de agora, o piso rochoso, misturado com muita pedra solta, a intercalação de corrida e caminhada era sistemática, as pernas duras e pesadas iam piorando, conseguindo apenas controlar a respiração minimamente.
Era possível ver não o cume, mas as partes mais acentuadas do resto da prova, todos os atletas que iam à minha frente, e a uma das zonas mais bonitas de toda esta prova, à qual eu apelidei de “Varanda”. Ainda tinha muito que andar até lá chegar, e após mais uma ultrapassagem ia tentar correr o máximo que conseguisse. Não sobrevivi durante muito tempo, mas não sumiu a vontade de continuar a tentar, pelo menos até às escarpas, onde não se consegue correr.

Créditos: Organização
Local totalmente rochoso e irregular, sem grande possibilidade para correr. Apenas tentava encontrar o caminho menos agressivo por entres as rochas até as transpor. Sabia que assim que o fizesse, podia correr à vontade, algum pessoal a dar apoio, e finalmente ali estava eu no cimo.
Apenas cerca de um quilómetro me distanciava do radar, o trajecto agora era fácil em terreno liso e sem grande inclinação, curva e contracurva, fantástico para correr a um ritmo rápido.
Estava animado, e tento iniciar a corrida lentamente para não ser um impacto grande logo de início. Alguma coisa não estava bem, quebrei logo ali, senti-me maldisposto, exactamente como me aconteceu da última vez que ali passei.
Não podia correr, não estava a dar, tinha que adoptar outra estratégia. Parei, bebi água, e comecei a caminhar, a má disposição continuava ali, e teimava em não desaparecer.
Que se lixe, foi o meu pensamento naquele momento, vou num ritmo mais lento a correr e logo se vê. Comecei a correr, e ao passo que vou progredindo a coisa vai atenuando, estava a resultar. Foi uma coisa passageira, que não entendi o motivo, talvez do esforço, da altitude, ou ambas tenham provocado isso, não sei.

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À medida que vou melhorando, vou aumentando o ritmo, mais uma ultrapassagem, e sigo direcção ao radar.
Faltava o último sufoco da prova, subir o radar pela escadaria mesmo até ao alto, uma meta com 40 metros de altura.
Entrei rápido na base da torre, seguia-se uma escadaria interminável, zigue-zague, zigue-zague, os primeiros degraus, ainda deu para uma espécie de corrida, contudo não durou muito tempo. Agarrava-me ao corrimão da escadaria, e puxava pelo corpo, estava de rastos. Ao mesmo tempo que pensava que já conseguia subir com mais rapidez, o corpo recordava que era impossível.
Foram necessários 50 minutos, para fazer 4 quilómetros. Foi preciso todo este tempo para chegar ao topo da serra, e escalar uma torre para uma vista de 360 graus sobre a Freita, mas valeu cada minuto.