terça-feira, 29 de setembro de 2020

Aventura ao São Macário - Viagem de conquistas

São as “provas” dos tempos actuais, ou numa forma mais sintetizada, treinos pós-covid.

De todo o mal que esta pandemia nos trouxe, há que saber aproveitar as coisas boas, e no trail há que esmiuçar ao máximo para aproveitar aquilo que nos faz feliz.

Ainda que tenha demorado algum tempo para dar início a este tipo de aventuras, não podíamos ter começado de melhor maneira. A ideia era simples, juntar o máximo de elementos da equipa, conviver, desfrutar, e conquistar o Sâo Macário. O Hugo foi “colecionando” vários tracks, pedindo ajuda a outra malta que conhece locais que nos são desconhecidos, e lá foi criando o caminho. Não tinha que ser o exacto, mas mais uma forma de nos guiar até lá. Faltou marcar a data, até que conseguimos definir o dia 16 de Agosto, com arranque pelas 03:00h da madrugada, em pleno centro de Vale de Cambra.

Estava assim lançado o desafio da Aventura ao São Macário.


A Aventura ao São Macário


Se tiverem paciência, aqui vai a minha viagem:

Eram 02:15h, e o despertador tocava, e já eu estava acordado há mais de meia hora. A euforia, e entusiasmo já me tinham posto alerta. Levantei-me e fui dar inicio aquele todo desafio matinal para não me atrasar. Dentro de 45 minutos tinha que estar no centro de Vale de Cambra, que fica a poucos minutos de minha casa.

Fomos 7 que aceitamos o desafio, e encontramo-nos todos, ainda a noite ia a meio, à excepção do Marcos, que iria nos encontrar mais tarde.


Prontos a sair de Vale de Cambra



Conversa aqui, conversa acolá e lá arrancamos. Era ver aquela malta que ainda andava pelas ruas a olhar para nós como se tolinhos fossemos, e talvez o sejamos, mas somos felizes assim.

Havia a consciência por parte de todos que o percurso podia sofrer alterações, devido a não encontrar o caminho, algum troço fechado, falhas de GPS, o que fosse, e que para isso tínhamos que arranjar alternativas, o que só por si podia atrapalhar bastante nas contas no final, mas já lá vamos. Felizmente tivemos bastante sorte com os troços fechados, parecia que aqueles caminhos que sabíamos à partida que poderíamos ter problemas tinham sido abertos propositadamente para nós. Vimos logo isso ao fim de 1 quilómetro, quando entramos num PR que nos leva pelas levadas, aquilo tinha sido cortado naquela semana, e que bem que soube, gosto muito daquele caminho, que já se encontrava a monte há algum tempo. Ainda assim seguimos sempre com algum percalço, uma vez que o frontal era a nossa única fonte de iluminação. 

Até Costa Anelha a coisa fez-se sempre controlada, ainda nem 5 quilómetros tínhamos feito, e já íamos a gerir, caminhar nas subidas, correr/trote nas descidas e planos mediante se podia e conseguia dependendo do piso. A noite estava a entusiasmar todos, por não ser possível ver a continuidade das subidas, e davam alento a correr, daí termos optado por essa forma, além de não irmos atrás de nenhuma vitória. Não conhecíamos outros caminhos, e tivemos que optar pela estrada, ainda que tivéssemos escolhido uma estrada estreita e antiga, não evitaríamos um longo segmento no asfalto, que nos levaria até ao fundo de Açude, e nos reencaminhava de seguida para cima, até Rôge. A noite ainda estava cerrada, e a chegada à barragem Eng. Duarte Pacheco fazia com que o corpo, já quente arrefecesse um pouco.


Paragem por Rôge


Vagueávamos num mato onde a flora era mais densa, ainda que desse para passar, dava para sentir aquela carqueja a roçar nas pernas. Um pequeno contratempo fez com que parássemos ali uns momentos a pensar qual caminho deveríamos seguir. Não demoramos muito tempo, mas foi ali que caímos na realidade que as coisas poderiam complicar-se quando estivéssemos mais longe e em locais que desconhecemos por completo. Mas o espirito era esse mesmo, ser uma aventura.

Já em Função, sabia que as coisas iam começar a moldar, dali só havia um sentido, subir encosta acima até ao Merujal. Iam ser cerca de 4 quilómetros metidos num estradão que nos levava ao alto da Serra da Freita. Foi um momento diferente e entusiasmante, assim que nos distanciamos das casas, onde a escuridão da noite era de al forma dominante, que os frontais eram a nossa única esperança. O céu estava estrelado, era um espetáculo cada uma daquelas luzinhas espalhadas acima de nós. Estava a gostar, andava à frente, vinha para trás, metia-me no meio, todos nós fazíamos um pouco isto, de forma a irmos acompanhando uns aos outros, e entreajudando.

A primeira aldeia da Freita foi também local de primeiro abastecimento, rondavam os 15 KM, e tivemos direito aos primeiros alimentos mais consistentes ao final de algum tempo. Os abastecimentos tinham sido programados antecipadamente, e iriamos ter ajuda do Fernando em cada um dos pontos, somente neste do Merujal, e dada a madrugadora hora, o Paulo havia conseguido uma garagem para termos a nossa comida (o meu muito obrigado ao Hélder).


Era para ser feito, mas não deu :D

Estivemos ali um pouco mais de tempo que o normal num abastecimento de qualquer prova, o que fez com que arrefecesse, assim que venho para a rua, noto isso, com um bater de dentes constante. Imediatamente visto o impermeável e vou-me mexendo para voltar a aquecer. Estando enfiado na aldeia, as casas impediam de ver o nascer do sol atrás da serra, assim tentamos apressar o passo para tentar vislumbrar o que fosse possível.


Amanhecia no alto da Freita.

Nos entretantos já o Marcos havia comunicado a dizer que já vinha ao nosso encontro, que acabamos por combinar o encontro em Albergaria da Serra. Apanhamos o PR15, que nos levaria exactamente ao centro da aldeia, já sob os primeiros raios de luz. Segui com o Fábio, logo após a aldeia da Mizarela até ao ponto de encontro, e aguardávamos assim o resto do grupo. Estávamos com 20 quilómetros percorridos, e a sentir-nos bem, satisfeitos, não perdemos muito tempo e prosseguimos caminho. Ainda eram zonas que conhecíamos, e o terreno permitia alguns abusos, assim intercalava uma corrida mais rápida naqueles trilhos que parece que nos imploram para correr, com alguma caminhada ou trote em subidas.

Em Pedras Boroas iria dar início a um caminho que havia percorrida uma única vez, nos 65KM do UTSF, que nos levava a Gestoso, onde combinamos com o Fernando para o nosso 2º abastecimento. Foi ali o nosso primeiro e real problema com o caminho, não encontramos, ou fugimos do estradão, e andamos ali um pouco perdidos, no meio de toda aquela vegetação rasteira que as pernas querem negar para não ficarem “riscadas”. Fomos seguindo num caminho improvisado em busca do estradão correcto, e após alguns minutos ali estava ele. Dali foi sempre a correr até ao abastecimento, que havíamos combinado às 07:30h, não tendo falhado por muito, apenas uns minutos.


De regresso ao caminho

A descontração nos abastecimentos era notória, ninguém se preocupava com ser rápido, a brincadeira era comum por todos, e somente ao fim de alguns minutos é que tínhamos a real noção de nos meter a caminho. Sair dali, implicava voltar atrás umas centenas de metros, e assim o fizemos, retomando assim ao percurso combinado. O planalto não obrigava a grandes esforços, a corrida era mais regular, o sobe e desce era sistemático e fazia-se sem problemas. Ia recordando aos poucos cada metro que íamos percorrendo, e ansiava a chegada de uma descida envolta numa floresta mais densa, para variar a exposição ao céu aberto. Torna-se mais agradável visualmente, e a descida é um convite a abusos para as pernas. Foi sem dúvida momento de recordações, a aldeia de Tebilhão, estava mesmo à nossa frente, mas onde fomos “obrigados” a seguir pela estrada, a levada que conhecíamos, e que queríamos seguir estava coberta de silvas, não havia forma de passar lá, então, optamos por fazer 1 quilómetro sob o asfalto.

O corpo continuava a responder impecavelmente bem, já com pouco mais de 30 KM, e o desgaste ainda a boa disposição ainda reinava. Em contra partida, foi onde começou os problemas para o Roni e Hugo, músculos e tornozelo respectivamente. Nada que não suportassem, mas que traria impacto mais lá para a frente. A descida que nos leva até ao centro da aldeia é rápida, e dali para a frente era continuar a descer até ao rio, e que descida, toda feita ainda em pedra, coberta pelas árvores, é o reviver de outros tempos.


Descontraidos


Chegamos a Cabreiros, e após uma breve paragem para um café, voltamos a entrar no trilho do Caminho do Carteiro, que já seguíamos desde Tebilhão. Arranquei atrás deles, numa descida contínua sem fim à vista, no entanto das melhores descidas que fizemos, num single track cravado naquela encosta. Decidi desfrutar daquela descida até ao final, e esperava lá no fundo pelo resto do pessoal, já o Fábio tinha arrancado, vou passando o pessoal, e só o Paulo acaba por entrar no desafio de “queimar” sola por ali abaixo, pelo menos durante um pouco.

A dimensão daquela descida era incrível, e no final havia uma pequena recompensa que acompanhei com o Fábio, num pequeno riacho do rio, onde pude mergulhar um pouco as pernas, enquanto esperamos todos se chegassem. Se tínhamos ficados deliciados com a descida, a subida que se seguia não ficava nada atrás, fazendo relembrar o trilho dos incas, numa encosta, onde vislumbrava-se colinas no lado oposto, e os vários poços e cascatas do Rio de Frades no fundo daquele vale, sendo vertiginoso a vista.

O trilho até ao rio







Estava a ser uma caixa de surpresas, e a chegada a Rio de Frades, foi outro momento de admiração, efectivamente ficamos rendidos, com a beleza do local. Admiração também estava a ser reciproca por parte dos aldeões, sempre que perguntávamos alguma coisa relativamente ao caminho, havia sempre a pergunta para onde íamos ou de onde vínhamos, e a reacção era de espanto, o que de certa maneira nos fazia sentir orgulhosos.


Rio de Frades


Na saída de Rio de Frades houve um percalço, não seguimos correctamente o caminho, tendo andado ali um pouco à deriva até encontrar novamente o trajecto, sobe e desde em estrada, até então encontrar o trilho que nos levaria até ao fundo de todas aquelas serras, mesmo para o leito do rio Paivô, que é percorrido também no UTSF na prova dos 100 KM.

Era a minha primeira experiência em travessia de rio durante vários quilómetros. Foram 3 quilómetros, mas em marcha lenta, enquanto houvesse areia e pedras pequenas no fundo, a progressão era exequível, quando as rochas já desgastadas pela corrente do rio surgiam, era o problema, um pé em falso era uma queda garantida.

Ora o leito do rio, algo mais cheio do que é suposto nesta altura, ainda nos cobria a maioria das pernas, havendo partes em que podíamos ficar submersos. Quando pisamos as rochas, o cenário era mais desconfortável, sendo que a queda podia ser feia.


Rio Paivô - O primeiro contacto


Foi provavelmente os 3 quilómetros mais longos desde que corro, que apenas ficaram mais ricos quando vejo na estrada a minha família, que já se havia encontrado com o Fernando, e nos aguardavam ali em cima.  Era hora de abastecer e de recuperar algum tempo, estávamos bastante atrasados, e o caminho que faltava não iria facilitar.

Foi uma rápida passagem por Covelo de Paivô, e entrar numa encosta que nos levaria directamente a Regoufe.

Foi subindo gradualmente, ainda que acessível, foi-se misturando corrida com passada larga, mas o avanço que íamos dando entre nós já notório, e tivemos que aguardar uns minutos para agrupar. E foi em Regoufe que as coisas começaram a complicar-se seriamente.

O Hugo e o Roni estavam em sérias dificuldades tanto o tornozelo, como o joelho haviam piorado, e dali para a frente seria para estragar ainda mais, e a opção de ficar ali era a mais válida, e que dadas as circunstâncias foi a mais acertada. Restava ligar ao Fernando que nos aguardava em Covas do Monte, para voltar atrás e buscar vir buscá-los, o problema era que ali não havia rede, foram tentativas de todos os telemóveis, mas nenhum conseguia efectuar a chamada, até que ao final de alguns valentes minutos, o Paulo lá conseguiu, ainda que com alguma dificuldade, mas entendeu a mensagem.





Não fazia sentido ficar ali, combinamos prosseguir, só pensava em avançarmos, e não perder mais tempo, já pensava naquilo mais como uma caminhada do que propriamente uma corrida. Tinha consciência desde início que facilmente podíamos ter falhas no caminho, mas felizmente até ali sempre encontramos solução, e o facto de estarmos tranquilos de início em relação a isso, agora com tanto esforço já acumulado, já não era bem assim.

Sem o Hugo, por ser o traçador do percurso, e quem nos vinha a orientar praticamente desde o início, agora estávamos entregues apenas ao meu telemóvel onde tinha o track, mas a bateria já estava a chegar à reserva, o que me estava a fazer comichão naquele momento.

Vimo-nos desgraçados para sair dali, simplesmente não dávamos com o caminho, e após descobrir um troço que aparentemente nos levava pode onde queríamos, lá seguimos.






A verdade é que ele nos levava onde nós queríamos, à estrada do Portal do Inferno, contudo umas centenas de metros cá traz, o que nos obrigaria a andar pela estrada até à descida para Covas do Monte. Foi ali que comecei a ferver, estava profundamente irritado, a situação começava a enervar-me, e não conseguia acalmar, e só demonstrava isso correndo numa secção onde devia caminhar. Não estava a ver grandes soluções logo que perdesse bateria, e não tinha a powerbank comigo.

Talvez aquelas imensas horas ali já me estavam a dar conta da cabeça, e via as horas a passar e nós cada vez mais atrasados. Não era por mim, mas sim por todos os que nos acompanhavam, que estavam ali “pendurados” por nossa causa, e isso é que me estava a incomodar. A chegada ao portal do inferno, deu para cruzar com a minha mãe e o Fernando que já tinham vindo buscar o Hugo e Roni, o que aproveitei para pegar de imediato na powerbank para pôr o telemóvel a carregar.






Arranquei de imediato, ao encontro do resto do grupo que já se aproximava da descida arrebatadora.
Assim que ali cheguei fiquei a admirar aquela descida. A dimensão daquilo congelou-me ao solo por breves momentos vendo a aldeia, onde tinha que chegar, mesmo no fundo daquelas serras todas. Acordei, olhei para o lado, e já eles desciam, enquanto eu ficava boquiaberto com o que ainda tinha que atravessar. Meti-me a caminho, e logo percebi que dali ia sair com dores se não me controlasse. A descida era ingreme, repleta de xisto, pedras cravadas na terra e solta, era descer e esperar não pertencer à grande probabilidade de queda.

Segui mesmo até ao fundo, local onde já estava o Fábio à nossa espera, e ali aguardei pelos restantes. Enquanto descia, não fui confirmando se estava enquadrado com o track, o que só validei quando já estava na aldeia, erro crasso que nos fez desviar por completo da trajectória.


"Aquela serra ali é que era fixe para subir"


Seguimos por um caminho de cabras, enquanto atravessávamos a aldeia, à procura do melhor caminho para voltarmos ao original. Uma das mudanças do caminho que era para ser feito inicialmente, foi para 2 segmentos, conhecidos como “O caminho do morto que matou o vivo”, e “O monstro da Pena”, ainda com passagem pela Aldeia da Pena. Ora isto, seria a cereja no topo do bolo, uma vez que eram 3 sítios que tinha curiosidade em passar. Contudo, não passou de uma miragem, uma vez que mesmo após alguma insistência minha em seguirmos um caminho que nos levaria onde queríamos seguir, acabamos por seguir em direcção oposta, o que nos desviou por completo do caminho.





Foi ali que o meu psicológico começou a tramar das suas, enquanto via o topo do São Macário ao longe. Estava desiludido por não estar a correr conforme planeava, por não fazer dos trilhos que mais me cativava, e por ter que seguir um caminho totalmente distinto e sob o asfalto. Voltar para trás, seria acrescentar mais quilómetros, tardar ainda mais a chegada o que também não era benéfico para ninguém. As imensas horas ali, fizeram com que o desalento e a má disposição se metessem à frente de tudo e interrompem-se um momento de felicidade que até ali transportava.

Pôs-se várias hipóteses em cima da mesa, em como abandonar ali tudo, mas dali até ao São Macário, eram apenas 5 quilómetros por estrada, que se faziam bem. Já sem o mesmo sabor fizemos e terminamos, ao fim de 60 KM, junto de um grupo espectacular que nos aguardava já há largas horas.


A garra lá ao longe!


Nem tudo foi mau, foi uma experiência que fica na memória, foram momentos únicos, e uma superação fantástica. Reconheço que tivemos bastante sorte com os caminhos estarem de fácil acesso, praticamente limpos, falhou-nos sim a orientação por falta de conhecimento daquela zona. O final não foi o que quis, nem o que desejava, contudo há que tirar o melhor daquilo, que foi a conquista daquele ponto longínquo de casa, o São Macário, atravessando as serras da Freita e Arada, e sem dúvida o convívio de toda a malta.


São Macário conquistado


Fiquei fã deste tipo de aventuras, e daqui surgirão mais, tudo com um propósito que ainda não sei se irei conseguir, mas lá estarei para tentar. Mais para a frente o saberão.

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Os afazeres, conquistas e prazeres da vida

A vida vai se moldando, e a corrida também se moldou.
Tudo aquilo que esperava ou ambicionava fazer este ano acabou por ficar numa lista de “afazeres” para outras alturas.
Dessa lista uma minoraria são impossíveis, os restantes são exequíveis a médio ou longo prazo, o que dá tempo para concluir.
Não sou de ver o copo vazio, gosto de ver as coisas de forma optimista, e com esta situação mundial, surgiram novos objectivos, diferentes formas de me desafiar sem que para isso tenha que ser no mais rápido tempo possível. E verdade seja dita, os treinos que faço também não servirão para muito mais que isso, desfrutar, sem grandes pressas nem abusar.



Mas o abuso termina logo que penso naquilo que esta pandemia me privou, e me proporcionou idealizar alguns projectos para se irem fazendo. Não há provas, é certo, mas há caminhos, trilhos, estradas que estão ao dispor todos os dias, e que com vontade, tempo e em alguns casos, companhia conseguem ser tão ou mais relevantes que provas.
Numa prova é certo e sabido que as coisas estão delineadas, e estamos “limitados” aquilo que será o trajecto idealizado pela organização.
Não ponho em descrédito qualquer organização, porque sem elas não conheceria muita coisa que conheço actualmente, e mal existam provas, provavelmente serei um de muitos que lá estará novamente atrás da linha de partida.
Mas porque não sermos nós próprios a idealizar um trajecto, e a desafiar a nós mesmos? Fugir um pouco à “rotina” a que nos acostumamos.


Vistas da Freita

Foi assim que foram surgindo ideias ao longo da quarentena. Não são para serem realizados todos num momento só, nem num curto espaço de tempo. Outros que já tinha idealizado bem antes disto tudo, mas que nunca foram avante, e agora podem se juntar a esta uma nova lista de “concretizações”. O que posso afirmar ter sido uma época produtiva, no que a ideias diz respeito, faltando apenas pô-las em prática.

Entretanto surgiu o desconfinamento, as provas continuavam sem surgir, e bem, mas as virtuais foram aparecendo, e aproveitei para me inscrever em algumas. Na qual destaco o “Desafio Vertical”, por ser algo que me enchia as medidas, tanto por ser algo que gosto, como pelo que me iria desafiar.

Do Detrelho da Malhada

Foi partir em busca de locais com subidas, e que facilmente se acumularia desnível positivo. Felizmente aqui na zona, não falta disso, Serra da Freita, foi logo o local escolhido para a primeira tentativa, com subida pelo segmento da Freita Vertical, escadas do martírio e Bradar aos Céus, só aí foi um “fartote”, algo como sensivelmente 25KM, e uns 1700 D+, ganhos na sua maioria em somente 2 subidas.
Após este dia, tive uma pequena lesão, nada de grave, parei uns dias, recuperei e assim evitei parar umas semanas.
Voltei aos trilhos, e seria um teste da recuperação, numa longa subida ali perto de casa, conhecida como Trialeira de Cabril, cerca de 2KM de extensão, e pouco mais de 300 metros de desnível. Estava impecável, e ainda deu no final de tarde, para uns 10 KM com pouco mais que 900 D+.

Estava tudo afinado para o maior desnível positivo ganho para daqui a 2 dias. O objectivo era dobrar os 1000 metros, e assim foi, no mesmo local foi um sobe e desce constante, era desgastante mentalmente, mas com companhia e alguma conversa à mistura, a coisa foi-se fazendo. Deu para sensivelmente 2200 D+, em 25 KM. Ali não há muita história, ou se está a subir ou a descer, só tem que se gerir a máquina para não rebentar. No final das contas, terminei o desafio com 8862 D+, juntando alguns outros treinos pelo meio.


O dia dos 2000 D+

Não havia objectivos de chegar a algum patamar, somente de ir fazendo conforme se podia, porque o tempo iria ser pouco, era uma questão de dias até inevitavelmente abrandar por completo. Parece confuso, mas não o é, pelo simples facto de a vida me proporcionar o melhor momento que vivi até hoje, é motivo suficiente para interromper aquele desafio. Algo tão pequeno, mas que consegue ser bem maior que todo o resto, alguém que num futuro me irá chamar de pai. Optar por ir trocar fraldas e choros no colo pode parece aborrecido e chato, mas vale a pena. É contraditório, mas é verdade.
Os treinos vão surgindo conforme se pode, em prol de algo maior, mas as “concretizações” ainda pairavam na cabeça, e algumas já começavam a ganhar forma.
O bom de ter uma equipa, um grupo de amigos que correm tudo para o mesmo dá em coisas que a olho nu, parecem invulgares e desconcertantes, mas visto bem à lupa, não é nada demais. Isto se excluirmos o calor do mês de Agosto, o ponto longínquo ao qual nos propusemos a alcançar, a falta de preparação, num percurso linear.


A montanha mais alta conquistada!

A conversa começou com um desafio lançado pela organização do UTMB, e acabou com uma proposta de chegar ao São Macário, um dos pontos altos da Serra da Arada, precisamente do lado exactamente oposto ao que iremos iniciar, tendo ainda que fazer a travessia na íntegra da Serra da Freita, o que equivale a transpor 2 das 3 serras pertencentes ao maciço da Gralheira.
Faltava uma coisa, que era o essencial, trilhos, caminhos, estradas o que fosse necessário para lá chegar.
Não entrei nesse campo, mas o Hugo tratou de fazer uma mistura deles, desde o que já havíamos feito tanto em treino como em provas, outros que procurou saber junto de quem conhece a zona, e lá foi somando quilómetros e desnível ao percurso.
No final tudo somado e calculado digitalmente ronda uns 52 KM, com 3.500 D+, agora no terreno a coisa pode ser diferente, e vai ser.

A ideia é simples, subir a Freita a partir de Vale de Cambra, andar no alto da serra, ainda que com sobe e desce ligeiros, e descer em direcção a Tebilhão. 
Menciono esta aldeia, já algo distante do local onde prevemos partir, por ter sido um dos pontos onde passei no UTSF, o que indica que até lá sei minimamente o caminho, e tenho alguma noção daquilo que tenho pela frente, por outro lado, sei que dali a uns quilómetros à frente até ao final a coisa será diferente, será o desconhecido para mim, e ao que tudo indica a parte mais complicada, pela tecnicidade do terreno naquela zona, ou assim ouvi dizer. Posso já ter passado em algum ou outro troço, mas como consigo contar por uma mão as vezes que para ali fui correr, não me recordo de nada.
Seja como for, as coisas estão delineadas e combinadas, faltando apenas afinar um pouco a logística da coisa, para termos algum apoio durante o caminho, de resto a ideia é desfrutar a fazer aquilo que tanto gostamos.

É engraçado e alegra-me ao mesmo tempo, que uma simples aventura cause tanto entusiasmo como uma prova que tanto queria fazer, se tratasse.

Tudo aponta para meados de Agosto, resta não haver nenhum contratempo que impeça ou adie a travessia das duas serras, pois estou ansioso pela aventura deste Verão. Resta contar os dias.

quarta-feira, 18 de março de 2020

Bateu à nossa porta...

Bateu à nossa porta, é inevitável e temos que perceber e entender isto da melhor forma possível sem prejudicar tanto a nós mesmo, como outros.
Pensemos em todos como um só, e não só no nosso umbigo, sejamos altruístas hoje, e continuemos a sê-lo amanhã.
Entendamos que desta forma para além de nos protegermos, também contribuímos para o bem estar de outros.
Não esperemos por regras, sejamos impulsionados por todo este enredo e sejamos voluntários de um amanhã melhor.
Quando, e se as regras aparecerem, não as furem, vivemos em sociedade, e sejamos isso mesmo, uma sociedade.
Lutemos por ser um exemplo de quem soube lutar contra prognósticos, e contrariemos o que a estatística mais negativa nos possa dar.
Temos que ser conscientes que só o facto de “ao virar a esquina”, podemos dar de caras com sérios problemas, tanto para nós próprios como para quem nós tanto prezamos, sem sequer nos apercebermos.
Sejamos responsáveis com todos, para sermos connosco próprios.
“Estamos no mesmo barco, e não sabemos para onde vai”, é certo e sabido. Agarremos nos remos, e levemos isto a bom porto.

Protejam-se

terça-feira, 10 de março de 2020

Ultra Sicó 57KM - Um carrossel de emoções


- “Estou! Estás onde?”
- “Estou em Tapeus, no abastecimento à tua espera e tu?”
- “Ainda estou com 22 KM, a chegar ao abastecimento do quilómetro 25, e se calhar fico por aqui, não estou em condições, vai ser para sofrer o resto da prova.”




Sicó, a prova que me chamou atenção, e me deu a conhecer o trail, ainda era eu um rebento no mundo da corrida. Em 2017, foi a primeira vez que percorri aqueles trilhos, e fiquei fã, de forma a ter repetido em 2018.
Dois anos depois, regresso, mas desta vez para uma distância mais demolidora, mas que me fez sentir como algum tempo não sentia. Aquele nervoso miudinho, aquela noite mal dormida e inquieta a antever o que ia fazer, ou como o iria fazer. Tudo isto devido ao facto de me ter preparado para tal, foram poucos meses, mas com foco somente neste dia, queria ter treinado mais, mas dentro daquilo que me foi possível, foi o que consegui, e sabia que tinha hipóteses de a concluir, e só isso já me fez ambicionar mais que o que até ali havia feito.


Créditos na foto

Foi uma noite inquieta que me fez acordar sobressaltado logo pela fresquinha, manhã gélida, e com vontade de querer estar um pouco mais no quente da cama, mas tinha que ser. Já foram várias as vezes que fui correr com menos horas de sono, não ia ser agora que isto me ia travar.
Chegado a Condeixa e com alguma pressa, fui encontrar o autocarro que nos levava directamente para Santiago da Guarda, local de início da distância dos 57 KM, e cruzamento de percurso para quem vai na distância maior (111 KM).
Foi o recordar de um ponto que mais critiquei no Vouga Trail, com o tempo de espera que tivemos que suportar até à hora de partida, com cerca de 1.30h em pé. Valendo somente o facto de podermos estar abrigados da chuva e do frio, num complexo monumental local.

A ansiedade foi acalmando, e a preguiça apoderando, estava com algumas reticências se o iria conseguir, já que antes tinha tantas certezas que era possível, foi assim que me arrastei para fora do edifício, e comecei a tentar ambientar-me ao clima fresco e chuva que se previa pelo menos para a fase inicial da prova. Eram 09.30h, e o gelo foi rompido, estávamos finalmente no terreno, rumo ao que para mim em grande parte era desconhecido, tirando algumas secções por conhecer das edições anteriores.
Foram algumas centenas de metros até entrar em trilho finalmente, que não tardou em interromper a velocidade de inúmeros que ali se aventuraram a apressar na fase inicial.
A pedra solta, e riachos de água devido à chuva que já havia terminado, foi o suficiente para atrasar uns quantos, e deu para pelo menos dispersar-me da grande maioria.
Tentei acompanhar o Fábio naquela fase inicial, mas a confusão era tanta que acabei por o perder logo ali, e não conseguindo mais alcançar, pensei para comigo mesmo, se é para tentar fazer isto mais sério e já que estás capaz de o fazer, sozinho terá outro sabor.


Pouco antes de partir. A habituar ao frio. Foto de ‎"Christine François Wilman"

A comunhão do percurso com os 111 KM foi de alguma forma engraçada, ver toda aquela gente que enfrentava já umas longas horas e muitos quilómetros nas pernas, sem eu nunca deixar de dar uma palavra a cada um que passava.
Estranhava os já mais que conhecidos estradões do Sicó ainda não terem aparecido, e após 5/6 quilómetros lá surgiram, ainda que um pouco tímidos, devido à grande afluência de água.
O caminho tornava-se perigoso, fazendo os caminhos um pouco mais artístico, não fosse a grande possibilidade de dar várias piruetas seguidas em tão poucos metros. A lama já mais que pisada fazia com que deslizasse a cada passada, tendo perdido a conta de vezes que não me passou pela cabeça que seria ali que ia dar uma grande queda. Felizmente o susto maior que tive, foi numa pequena descida em que ia caindo para trás, e provavelmente desceria o resto sentado. Felizmente, não passou de um susto.

O tempo já havia melhorado bastante, não se sentia tanto frio, a chuva desapareceu, foi tréguas do S. Pedro para connosco, e deu para desfrutar mais do percurso. A primeira grande subida apareceu já aos 8/9 KM, até atingir o ponto mais alto da prova. Deu para suar, não que fosse muito agreste, mas deu para puxar bem pelas pernas, dado a grande amplitude de movimentos trepando algumas rochas. A descida apareceu algo que tímida, sem grande inclinação, mas um pouco abundante em lama, e não seria de esperar outra coisa. Procurei sempre as correr pela lateral do trilho, onde existia vegetação e não era tão perigoso, havendo algum atrito e menor risco de cair.


A chegar ao topo do Monte de Sicó. Créditos na foto

Foi descer, e bastante, num trilho em que nem era preciso procurar as marcações para o fazer na totalidade. Sempre com pedra à mistura, mas com mais segurança do que havia sido feito até ali, descendo a colina do Monte do Sicó, e chegar a “Pousadas Vedras”, para o primeiro abastecimento. Foi o torço mais longo, entre abastecimentos, e com já 16 KM, fazendo ali uma rápida análise, sentia-me perfeitamente bem, não tinha dores, nada de cansaço, sentia perfeitas condições para correr, estava maravilhado. Afinal o treino que fiz estava a dar resultados.
Procurei não perder muito tempo ali, apenas alguns minutos, não queria desleixar tanto na alimentação como hidratação, e fiz-me ao caminho.
A saída fez-se estrada fora em busca do próximo trilho, com ligeiras subidas, em que tentei voltar a atingir os ritmos que vim até ali.

Foram uns poucos metros para abrandar e caminhar. – “Acabei de comer, parei e estou a arrancar, o corpo manifesta-se e não quer andar. Aguardemos um pouco” – Pensei naquele momento, enquanto tentava recuperar forças para voltar a correr.
Não demorou muito, mas foi algo forçado, e lá consigo voltar a correr, ainda que com folego algo descontrolado, e um cansaço a querer manifestar-se. - “Noite mal dormida? Será que vai complicar-me as coisas?” – Uma série de questões, começavam a surgir na cabeça, e ao mesmo tempo desanimava. Afinal tinha treinado para aquilo, queria fazer uma prova tranquila, com ritmo mais forte, e sem grande cansaço acumulado.

Valeu mesmo os trilhos, os single-tracks que iam surgindo e que tanto adoro daquela zona, num constante mudança atípica de cenários. A entrada no trilho de Poios foi fantástica, coberto pela vegetação, e num caminho a rasgar o piso até ao fundo de um vale.
Lembrava daquele local já visto por outras crónicas que fui lendo de quem ali já passou, e estava muito curioso com aquilo.
Infelizmente não consegui usufruir como queria, foi como uma espécie de cansaço me tivesse apoderado. Senti-me fraco e com sérios problemas para avançar, já sendo um esforço dar o próximo passo. Pego numa barra e empurro goela abaixo em conjunto com água para evitar problemas maiores. Estava cariz baixo, até há pouco tempo, estava a sentir-me em perfeitas condições, a num ápice as coisas mudaram radicalmente e com tão poucos quilómetros. Fui de ideal a besta num instante, morri completamente.


O fantástico Vale dos Poios, onde não consegui desfrutar.
Foto retirada do site www.greentrekker.pt

Era um zigue zague encosta acima num monte rochoso que se tornou um tormento, começo a sentir-me cada vez mais fraco, e com poucas condições para fazer a prova em completo. Foi por volta dos 21 / 22 quilómetros que tomo a decisão – “Aos 25 KM, se não me sentir bem, por ali fico. Não quero sofrer até ao final.”. Já num trilho que virava o monte, pego no telemóvel, e ligo para a minha namorada que estaria num dos abastecimentos há minha espera, provavelmente em Tapeus, quilómetro 33.

- “Estou! Estás onde?”
- “Estou em Tapeus, no abastecimento à tua espera e tu?”
- “Ainda estou com 22 KM, a chegar ao abastecimento do quilómetro 25, e se calhar fico por aqui, não estou em condições, vai ser para sofrer o resto da prova.”
- “Mas estás bem? Não desistas, tu consegues”
- “Não sinto totalmente bem, estou fraco e sem grande força para continuar, e não quero ir em sofrimento até ao final. Vou ver como me sinto no abastecimento.”
- “Vai. Tu consegues, não desistas. És capaz.”

Estava a arrastar-me, e estava a ser ultrapassado constantemente. O sol espreitava por diversas vezes, e abafava o clima naquela encosta, e faltavam uns míseros 2 KM para o abastecimento, até conseguir colocar um género de trote.
A minha cara, naquele momento, devia ser algo semelhante a de alguém que estivesse a desfalecer, tal era o desalento e o esforço que fazia para dar um próximo passo.
Estava no abastecimento, que em circunstâncias normais, já teria saído dali para foram, mas foi onde procurei repousar e hidratar bem, isto deveria ser uma desidratação, e com a reposição de líquidos e comida, isto vai lá.
Enquanto ali estou, vou vendo muitos chegar e partir rapidamente, inclusive a Márcia, que me veio perguntar se estava bem, tendo explicado a situação, e afirmando o que já pensava, que pelos sintomas só poderia ser desidratação.

Após verificar que estava bem, arrancou, visto estar bem posicionada, e iria tentar o melhor que conseguisse dali para a frente.
Ainda aguardei mais uns minutos, e após bastante líquidos, e comida, decido retomar, caso me sentisse mal, dou por encerrado e volto para trás. Pego numa água das pedras de limão, que já me ajudou noutras provas, e bebo, enquanto recordo aquela conversa telefónica, que me moralizou e me deu confiança para não desistir, e chegar à meta. Foram poucas as palavras, mas foram as suficientes e as mais assertivas naquele momento
Aos poucos começo a sentir frio, e opto por vestir o impermeável que trazia na mochila. Não queria prejudicar o desgaste do corpo, com o frio do exterior.
Estava decidido, sigo caminho, e vamos ver o que acontece…

Saio de Poios, e mal coloco o pé fora do abastecimento, sinto uma corrente de ar fresco que me deixa gelado. Tento sair dali rapidamente, e ainda em modo de caminhante prossigo até começar a sentir o suficientemente bem para voltar a correr. Batia o dente de tanto frio que sentia, foi ali que vi o quão fragilizado estava, e uns 100 metros depois, tento um trote, e a coisa funcionou.
O corpo respondeu positivamente, e sem queixas, e com o psicológico a dizer para não exagerar, deixar as coisas andar, e daqui a pouco vemos o que se sucede.
Os quilómetros foram passado, e não senti quebras, bem pelo contrário, melhorava com o passar do tempo e isso ajudou a equilibrar-me mentalmente novamente.
Ia voltando a recuperar lugares atrás de lugares, ainda sem exageros, com ritmos ainda que contidos.


Daqueles abastecimentos fartos em tudo. Foto de ‎"Christine François Wilman"


Olho para o relógio e vejo que estou a chegar aos 33 KM, onde estava o meu apoio e local onde pretendia parar para comer algo mais consistente. Aperto mais o ritmo, e tudo indicava que sim, que o mau momento ficara para trás, e estava rejuvenescido. Foi como se tivesse caído a um poço sem saída, e alguém me tivesse arrancado dali.
Mesmo a chegar ao abastecimento, apanho a Márcia de novo, e apanho a minha namorada e os meus pais. Agradeço as palavras, e indico que já estou bem.
Entro de rompante no abastecimento e bebo água e mais água. Uma canja que me confortou o estômago, e me soube pela vida, enquanto falo com a família a explicar o que se tinha sucedido. Agora estava diferente, estava energético, e queria arrancar o mais rápido possível. Despeço deles, e combinamos ver em Casmilo, e arranco com a Márcia.

Prometia ser a etapa mais dura de todo o percurso, ganhando 600 D+ em mais ou menos 10 KM, numa longa subida assim que saímos do abastecimento.
A subida era realmente longa, mas acessível, não sendo muito inclinada, nem técnica, sendo os últimos 300 metros talvez o que complicasse mais todo aquele segmento. Acabo por deixar a Márcia para trás, e sigo sozinho.
Assim que consegui atingir o topo, não perdi muito tempo, e consegui rapidamente impor ritmo de corrida, e seguir os longos estradões que ligam as ventoinhas eólicas. O extenso estradão foi uma manobra de nos desconcentrar, e após uma ligeira descida, obriga-nos a finalizar numa longa subida. Viramos o monte, e voltávamos a descer, estava finalmente a fazer o que queria desde o tiro de partida, mas que infelizmente havia sido interrompido entre os 16 e 25 KM.
Isso já estava para trás das costas, seria eu contra o tempo agora, e tentar recuperar o quer que fosse possível.

Descer em direcção às Buracas de Casmilo. Foto de ‎"Christine François Wilman"

A descer estava a conseguir impor ritmos altos sem abusos, tanto é que um dos comentários de um grupo que passei, já com cerca de 40 quilómetros nas pernas, era que estava a participar na prova dos 25, tal era a velocidade e a frescura com que estava.
Eu sabia que tinha treinado para aquilo, eu sabia que conseguia, só demorou um pouco a coisa realmente aparecer.
A descer o estradão, vou avistando as buracas, as famosas buracas, e terreno conhecido para mim, só que desta vez em sentido contrário.
O trilho das buracas, é dos meus preferidos. Adoro aquele single-track que vai tricotando as árvores que nos escondem do sol, É um zigue-zague constante, mas divertido, tendo apenas que estar atento às imensas raízes e pedras para não dar uma queda aparatosa. Para sair dali, só em subida, com uso dos 4 membros em algumas circunstâncias. E só depois então num caminho todo em pedra, até chegar a Casmilo.


A chegar a Casmilo. Créditos na foto

Era o penúltimo abastecimento, e continuava cheio de energia. Reencontrava a família, e ficaram admirados de já ali estar, sendo a fase mais complicada de todo o percurso.
Eu estava realmente cheio de energia, e mesmo assim não deixei de me precaver no abastecimento. Despedi-me deles, e agora só nos voltaríamos a ver no final, em Condeixa. Só algo mal antecipado é que me impediria de terminar a prova.
Tenho um estômago que às vezes parece uma princesa, e quando saí do abastecimento vi que não poderia desatar a correr, estava com a barriga pesada, e se o fizesse iria correr mal.
Ainda andei uns valentes metros em modo de caminheiro, estradão fora, até começar a descer, só então puder voltar a correr, e fui-me sentindo melhor. Chegava a Serra de Janeanes, e não segui pelo habitual caminho que fizera nos 25 KM e nos levava até ao Poço por um longo estradão que detestava.
Desta vez, atravessamos a aldeia, e sigo por um novo caminho, pelo menos para mim, que entre campos, a coisa se tornou mais agradável, tendo apenas sido interrompido, por mais uma “escalada”, curta mais trituradora. Saí dali rapidamente, e volto a meter-me a caminho até ao último abastecimento no Poço.

Faltavam uns 5 quilómetros até ao final, e não demorei muito, enquanto o pessoal da organização pediam para irmos agora com atenção, por ser um trilho perigoso.
De facto é, escorregadio, e acidentado, mas lindo q.b., sendo o meu preferido de toda a prova.
Vou relembrando o caminho ao mesmo tempo que o transponho, num sobe e desce ligeiro, parecendo estar num carrossel. Até então ali chegar, a uma entrada “desenhada” no meio da vegetação, e nos levando para um mundo diferente.
Após imensos quilómetros expostos ao céu aberto, foi como se entrássemos num bosque selvagem, num trilho paralelo ao leito do rio seco. Mas nem por isso o piso era menos escorregadio, e cada passo era um perigo para toda a estrutura óssea de quem preze por ela.
Não temos muitas oportunidades para correr, mas também sem tempo para descanso. Nos momentos que não corremos, temos que estar atentos onde colocamos os pés, seja a subir, seja a descer, quando corremos, qual é o melhor caminho a seguir, sem que se coloque o pé em falso, ou enfiemos a cabeça em algum tronco de árvore que se metem pelo caminho. Adoro aquele trilho, mas desta vez queria sair dali o mais rápido possível, sem quedas.
A subida por uma escadaria improvisada colina acima significava o final da tortura que aquele segmento nos dá.
Assim que vejo que chego ao cimo, e entro no estradão, estava feito. Ainda que faltasse cerca de 2 KM até ao final, dificilmente não terminava a prova.

Mais uma das famosas buracas. Foto de "‎Christine François Wilman"

Cerro os dentes, endireito-me com o caminho, e desato a correr. Faltava muito pouco para finalizar. Passava pela ruínas de Conimbriga, Condeixa-a-Velha, e chegava a Condeixa.
O meu pai aguardava-me junto ao início da última subida que nos levava até ao centro, e acompanhou-me naqueles últimos metros até à meta. Agradeço aqueles últimos metros, e vou em direcção à meta, passo pela minha mãe e namorada, e também dou um “high five”.
Cerro o punho, e festejo. Citando as palavras do speaker Hugo Água “Olhem para a felicidade na cara deste atleta”.

Foram 57 KM, feitos com as pernas e com o coração. Como disse de início, foi provavelmente a prova que mais me dediquei no que treinos diz respeito, sabia que era capaz de fazer a distância, e que poderia fazer uma boa prestação. Infelizmente o meu corpo numa zona prematura deitou-me abaixo, fisicamente e psicologicamente. Valeu o apoio de fora da minha família, e as palavras da quem acreditava em mim, que era capaz de concluir. Só aí consegui traduzir o meu treino na prova. Daí dois dias depois, estar sem dores de pernas, nem desgaste físico.

Sicó, foi o trail que me chamou para os trilhos, e onde adoro correr por todo o envolvente que esta prova nos dá.
Grande apoio durante todo o percurso, abastecimentos fartos, marcações excelentes, trilhos fantásticos, enfim uma panóplia de argumentos que caracterizam este trail como um dos mais ricos a nível nacional, não fosse a quantidade de atletas que todos os anos alinham no tiro de partida, seja na distância que for.
Tem os seus defeitos? Tem. Mas tem muita qualidade.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Vouga Trail – Já chegamos? Não. E agora, já chegamos? …


Já não é a primeira vez que dou uma segunda oportunidade a uma prova, e que acabam por me surpreender, fiz isso com o Ultra TrailMedieval, e fi-lo novamente com o Vouga Trail.
Esta, sem dúvida alguma, na sua primeira edição, deixou-me a desejar, percurso sem interesse, e o S. Pedro que não contribuiu para melhorar a coisa na altura.
A organização prometeu uma remodelação na integra da 2º edição, se seria para melhor é que era uma dúvida, fechei os olhos e atirei-me de cabeça, vamos lá ver no que isto dá.


Créditos na foto

A gélida manhã, não afastou muitos. Eram imensos, uma multidão, que se encontrava em Senhorinha, localidade de Sever do Vouga para enfrentar os 27KM com 1200 D+ anunciados.
Este, para mim foi um erro da organização, sendo uma prova linear, e disponibilizando autocarros para nos levar até ao local de partida, tivemos que aguardar quase hora e meia para a hora de partir. O que nos valeu, foi termos um pequeno café/restaurante, onde podemos nos concentrar e aguardar, mais quentes que ao ar livre.
Demorou, mas lá chegou a hora de partir, e foi debaixo da ainda fresca manhã que e num ambiente bem animado que se deu os primeiros passos de corrida.
O longo segmento em asfalto inicial, serviu também ele para aquecer um pouco, além de dispersar um pouco o pessoal. Os primeiros trilhos eram feito num caminho mais alargado, o que permitia rolar cada um à sua vontade, o que fazia parecer uma prova de downhill a quem estivesse a apreciar. Descíamos gradualmente sem grandes declives, até à primeira mais acentuada, foi ali que realmente a coisa ficou dispersa.


Final da descida. Créditos Objectiva em Movimento

Senti que as pernas estavam a responder, e dei os primeiros apertos a correr, sem grandes exageros.
A primeira subida, era o que havíamos feito no ano anterior a descer. É inclinada, mas dá para manter um ritmo de caminhada mais forte, intercalando um pequeno trote em partes menos agressivas aos gémeos. Recordo que seguia num grupo de 3 ou 4 elementos, e seguíamos sempre a ultrapassar imensa gente que ali já abrandava.
Mais de metade da subida feita, apenas uma ligeira descida para acalmar os ânimos e retomávamos até atingir o cume daquele monte.
Recordava o frio que passei ali na primeira edição, e que se seguia, uma inclinação brutal, mas desta vez feita a descer. Ainda que algo receoso, e meio que a travar, fiz mais de rompante que o habitual.
Surgia finalmente os primeiros trilhos mais vistosos e mais rolantes, single tracks, escadas, mais ou menos técnicos, um fartote.

O maior destaque, vai para os longos estradões que pouco de interessante trazia à prova, e que em segredo nos ia elevando a altitude. Nada que se fizesse notar, dado a ligeira inclinação, uma ou outra mais acentuada, mas curta o suficiente para passar despercebida. Os trilhos agora começavam a moldar-se, e estava embrenhado num louco single track, que percorria uma encosta, que ao mínimo deslize iríamos parar ao rio.
Encaminhava-nos até ao parque da Cabreia, com uma cascata fantástica, o caudal estava cheio devido às recentes chuvas, e o cenário apenas pedia para ser desfrutado, não ficando ninguém indiferente.
O frio já havia ficado para trás algum tempo, e o sol ainda que fraco já se colocava a aquecer-nos o pouco que fosse. As ligeiras subidas, já não eram assim tão ligeiras, gradualmente ficavam mais íngremes, e começava a moldar o ritmo da maioria de quem ali seguia.


A chegar ao topo da primeira subida. Créditos na foto

Silva Escura, pequena aldeia de Sever do Vouga, onde cruzamos maior parte do caminho pelo asfalto, e curiosamente sempre a descer. Uma maneira simpática de nos levar as profundezas, e relembrar que até à serra do Arestal é sempre a subir.
Ali na aldeia, recuperei a caixa, e estava entusiasmado por estar com pernas e com a sensação de ainda poder dar mais, as coisas estavam a correr bem. Pelo menos até ali…
A subida já havia começado algum tempo, mas nada de muito agressivo, com algumas abébias pelo meio, o que até facilitava a coisa, mas ali não havia margem para dúvidas, não precisava de indicações, nem de ninguém que me indicasse que a real subida iria dar inicio. Recordava o gráfico publicado pela organização, e era por esta altura que as coisas iriam tornar-se mais sérias.
Ainda que com um começo algo tímido, paralelo a um riacho, e só depois mesmo pelo meio do mesmo, sentia-se que as coisas iriam começar a complicar. E não demorou muito, até entrarmos em trepa paredes, onde os pequenos montes apenas eram transpostos pelo piso já calcado de quem ali havia passado.

Não se corria, nem se esforçava, enquanto formávamos uma fila onde marcava o ritmo, e os restantes me seguiam. Aos poucos fomos alcançando quem até ali nos precedia, e os últimos da prova de 47KM. Pé ante pé lá fomos avançando sem grande história nem palavras, apenas ouvindo a respiração, e o pousar das sapatilhas em pequenos ramos já ali tombados.
Era longa, e acentuada, sem que por breves momentos desse sequer a possibilidade de ver o topo. Era oculto pela alta vegetação, e pelas travessias que nos levava a mais uma subida. Ali comecei a sentir algum desgaste, mas também contente por não ter caibras dado já o longo tempo que levava a fazer o mesmo movimento.
A travessia da estrada nacional, indicava a chegada a Portas Vermelhas, e realmente era uma cor de alarme, as coisas não suavizavam e o fim continuava sem se avistar. Estava desgastado fisicamente, e psicologicamente estava a ser uma tortura por não saber o que faltava.

Faltavam poucos metros para um terreno mais rochoso, e onde conseguia ver alguns a correr após o transpor.
Seria ali o fim do tormento? Sim e não…
Realmente as coisas modificaram, já não havia paredes, nem nada de muito técnico que obrigasse a maior atenção ou agilidade, porém os músculos estavam amassados devido à longa subida.
Queria um abastecimento, que estava previsto ao quilómetro 16,5, mas que o meu relógio contrariava, visto já acusar pouco mais de 16 e não ter sinais de vista.
Ia trincando uma barra enquanto caminhava um pouco para recuperar, as pernas que até ali se tinham portado lindamente, estavam agora desfeitas.
Conhecia a zona do Arestal onde iríamos passar, mas naquele momento não me estava a conseguir situar, até finalmente entrar num estradão que nos levava por entre duas das poucas casas que ali existe.


Créditos na foto

Assim que reconheço o local, vejo algumas pessoas ao fundo que davam apoio e nos levavam até ao abastecimento que apenas surgiu quase aos 18 KM. Sentia-me vitorioso, e a partir dali era sempre a descer, bastava ter pernas, que naquele momento não me pareciam capazes para tal coisa.
Dirigi-me ao abastecimento, e usando o que ali havia, tentava recuperar energias para enfrentar os restantes quilómetros até à meta.
Assim que retomo o percurso, inicio uma ligeira corrida, mas noto que as pernas ainda estão perras e insistem que não querem correr. Ao mesmo tempo, sinto um ligeiro desconforto no estômago, e fico cariz baixo. Agora que queria aproveitar para conseguir rolar devidamente, não estou capaz de o fazer. A altitude, e o local mais sombrio, trazem novamente o frio, que me congelam as mãos, de tal maneira que me obriga a embrulhar na gola que trazia no pulso.
Só uns metros mais à frente consegui com que recuperasse a temperatura, e as pernas também ficavam mais soltas, ainda que travem ligeiramente.

A descida não tem grande história, grande parte feita em estradões, corta fogos, por vezes lá se fazia um ou outro trilho que fazia abrir o olho, mas nada de sonante.
Aos poucos as pernas vão permitindo abusar mais, volto a conseguir impor o ritmo que desejava desde inicio e deixo de pensar em mazelas ou dores de pernas, só queria aproveitar os últimos quilómetros de uma descida que noutras circunstâncias teria sido melhor aproveitada. Com cerca de 21 KM já intercalávamos o caminho com a prova mais curta até à linha da meta.
Entro em Sever do Vouga, e não há mais trilhos, somente asfalto até ao parque de Lazer local, onde estava a meta.


Equipa Vale Correr

Foi uma modificação em pleno, a alteração de percurso, foi a mais sensata e mais acertada, ainda que ache exagerado a passagem por estradões, está algo mais bem desenhado e de forma a triturar cada um que se atreveu a participar.
Tudo se resumiu a uma subida, onde obtivemos mais de metade do acumulado, ainda que bastante oculta de inicio, mas já com vista a nos receber, torturar e atirar-nos sem pernas para uma descida que por ela só pede para correr.
São Pedro ajudou, e contribuiu para o sucesso desta edição, com uma organização bem ciente do que era necessário para o conseguir.