Já foram algumas as vezes que a explorei, não em todo o seu
vasto comprimento ou altura, mas já vou conhecendo alguns pontos. Sempre que a
visito, descubro novos locais, novos pontos, uns mais visuais que outros, mas
sempre surpreendentes. São raras as vezes que não paro para contemplar alguma
paisagem, nem que seja para uma simples fotografia daquela imensidão. Esta
serra faz-me lembrar o quão pequenos somos, e a dimensão totalmente remota
daquilo que vivemos no nosso dia-a-dia.
A Freita conquista-me cada vez que a visito, e ao mesmo
tempo molda-me a mente. Quando a piso, penso que já estou habituado a ela, e que
posso vaguear à minha vontade. Não podia estar mais enganado. Acabo sempre por
recuar nas ideias e respeito-a, e só desta forma aquela rochosa serra me
convida a entrar e aguarda o meu regresso.
Foi assim no primeiro fim de semana de Outubro. Dois eventos
com características semelhantes divididos entre Sábado e Domingo. O primeiro
era a novidade, com uma bruta subida ingreme, encosta acima num final de tarde.
O segundo era a estreia para mim, na segunda edição de uma prova dura de roer.
Para aquele fim de tarde o “Freita Vertical”, como lhe
chamaram, era na sua essência isso mesmo. Desde o fundo de uma colina, até ao
topo da montanha, com a surpresa de terminar na torre meteorológica. As
surpresas tendem a ser boas, neste caso foi agressiva, dado o facto de ter que
subir 45 metros em escadas, após ca. de 4 quilómetros a “trepar”.
Eram 19 horas, e a luz do dia era escassa, e quando o
primeiro partiu serra acima, rapidamente caiu o escuro da noite. Era difícil de
os ver, apesar da excelente “varanda” onde nos alojamos para nos privar um
pouco do vento que nos rodeava. Aguardamos alguns minutos, e finalmente
começamos a ver o primeiro “pisca-pisca” bem lá no fundo. Um pequeno frontal
que ao perto parece não conseguir iluminar mais que 20 metros, conseguia-se ver
a uns 3 quilómetros de distância. Aos poucos vão surgindo outros “piscas”, e era
assim que rapidamente se ia formando a única fonte luminosa que serpenteava
aquela serra.
Aplaudimos todos que ali passaram ao nosso lado, e gritávamos
um “força”, como se de alguma maneira aliviasse um pouco a dor ou sofrimento,
mas que sabíamos que ia dar aquele incentivo extra.
O Hugo foi o único do nosso grupo que quis o desafio a
dobrar daquela serra. E daquela noite só nos indicou que estávamos tramados
para a etapa de Domingo. Mas isso já sabíamos, só ainda não percebíamos o
quanto.
Aquela manhã fresca, não estava nas minhas contas, mas era
animadora. Se me propusessem correr com manguitos num dia pouco assoalhado, ou
com o mínimo de roupa, devido ao forte calor, a minha escolha cairia sob a
primeira hipótese.
Dos vários “bitaites” que foi captando de boca em boca, uma
coisa era certa, aquela subida que era comum aos dois dias, era agreste, e o
segredo estava na gestão inicial, ou seja, nos primeiros 16 quilómetros de 25
na sua totalidade.
Eram duas distâncias que à chamada, para a partida, eram
alvo de controlo de material. Foi tudo feito um pouco sobre o joelho o que se
tornou um pouco confuso, retardando um pouco a inclusão de todos no pórtico
atempadamente. Regras, são regras e nesta estou de acordo, para além de
facilitar o trabalho a quem intervém em situações de risco, também pode ajudar
o próprio em diferentes casos.
Controlei cada passada desde início, e em terrenos que
conhecia não tive a ousadia de abusar.
Era um verdadeiro carrossel, logo à saída da aldeia de
Felgueira. Sobe desce, desce sobe, entre estradões, ou trilhos carregados de
pedra.
Seguíamos juntos, cerca de 4 a 6 atletas, misturando entre
as distâncias de 42 KM e 25 KM, ultrapassando uns aos outros, mas sem nunca haver
alguma fuga de quem quer que fosse.
Curta passagem pela aldeia de Cabrum, e voltava a subir até
à Felgueira. Foi dos percursos mais engraçados, pelo meio da flora mesmo junto
a um pequeno riacho, e moinhos abandonados, intercalando entre algumas escadas.
Agora, entre estradões, o grupo vai dispersando, e eu acabo
por ser o primeiro a afastar, ficando sozinho. Conscientemente, fiquei mais
alerta para a gestão, o que na prática era facilmente colocada de lado, dado a
facilidade que havia em aumentar a passada, e saborear aquelas descidas
apreciando os vales do nosso lado.
Era o regresso a Cabrum, a pequena aldeia, mas onde estava a
maior presença de apoiantes ao longo do percurso, e onde estava o primeiro
abastecimento. Naquele pouco tempo que ali estive, revi aquilo que havia feito
até ali, e o que me restava.
O que ainda faltava vir, era a parte mais dura, subida
louca, e terreno técnico. O que tinha deixado para trás, e que acabara de
consciencializar, para além do longo carrossel foram as imensas ultrapassagens
que até ali fiz. De facto, estava a correr às mil maravilhas, e tudo indicava
estar bem posicionado. Foi o meu grande foco para o que se seguia.
De volta ao caminho, sem grandes correrias iniciais por entre
campos, até a uma levada que a correr era uma impossibilidade.
Não era a melhor levada que havia percorrido. Talvez de
todas as que até hoje fiz, a mais acidentada, e que menos confiança me deu,
devido aos estreitos caminhos que a circundavam. Ainda vi a oportunidade de
colocar integralmente o pé naquela água fresca, mas o solo era escorregadio, o
que seria um cenário ainda pior. Foi assim até chegar a Paraduça, aldeia que
aguardava chegar por conhecer em parte o percurso que nos ia levar até à
subida. Ou assim pensei eu.
Dali até ao ponto inicial da grande escalada, sabia que ia
entrar num estradão bastante rolante, e acabei por me soltar um pouco, mas sem
grandes abusos. Estava convencido que já sabia o caminho por ali já ter passado,
mas trocaram-me as voltas. Não me enganei na fase inicial, mas quando vejo uma
tremenda encosta coberta por agulhas de pinheiros e um ou dois indivíduos a
trepar, percebi que afinal não estava totalmente certo das minhas ideias. Foi
massacrante aquela subida, seria uma pequena amostra, e um pequeno aquecimento
das pernas.
Dei mais uso às pernas nesta pequena subida do que em todo o
trajecto até ali já feito.
Chegava ao topo com a quase tentativa de um monte de
explosões naqueles músculos mesmo acima do joelho que tanto se manifestavam.
Regressava de novo ao estradão que conhecia, e nos levava a
descer até às Berlengas.
Desde aquele pinhal, o terreno rolante terminara. Dali para
a frente seria verdadeiros desfiladeiros que iriam ser atravessados. A descida
era mais um exemplo disso, terminando mesmo junto ao rio.
Dali para a frente seria uns cerca de 4 quilómetros com ca.
800 metros D+.
Pequena perspectiva da subida |
Não encontrava as fitas, nem se avistava trilho, achava
estranho, as marcações foram sempre impecáveis, ali estava alguma coisa a
correr mal, algum deslize. Quando olho mais em meu redor, consigo ver uma fita
mesmo por cima de mim, mesmo no cimo de uma rocha um pouco aguçada que escondia
o trilho entre a vegetação. Era o princípio da escalada, com a ajuda das mãos,
e o forte apoio dos pés em qualquer apoio que aquela rocha tivesse, e com
pequenos impulsos para a subir. Chegava ao trilho, contornava um pouco a rocha
e mais do mesmo, fitas sempre acima de mim, e mais rochas para trepar.
Não estava a dar, assim não ia conseguir.
Tinha conseguido chegar ali em perfeitas condições, mas agora
estava ofegante, sempre com sede e com receio que a água não desse para chegar
ao abastecimento que existia a meio da subida. Cada passo que dava era um
sacrifício, as pernas estavam duras, sentia cansaço e não estava a dar para
continuar. Queria sair dali, e abrandar toda aquela tortura, mas estava a ser
complicado.
Muita coisa me veio à cabeça, má gestão, desidratação,
cansaço acumulado, inúmeras hipóteses…
- “Calma João. Isto é somente uma fase, recompõe-te e tudo
irá correr bem.”
Parei ali no meio daquelas rochas, entre os arbustos. À
minha frente, iam-se distanciando aos poucos, o que não me incomodava, afinal
só queria era sair dali. Atrás não vinha ninguém, por isso não impedia a
passagem de ninguém.
Fecho os olhos e respiro fundo umas, duas ou três vezes, e
fico sereno. Tomo um gel, verifico a água que me resta, dando uns pequenos
goles para ajudar a “empurrar”.
- “OK. Esta é a água que me resta até meio da subida. Lá
abasteço e logo se vê. Vamos lá João. Tu consegues”.
Mantinha a cabeça erguida em procura de fitas. E pé ante pé,
lá fui prosseguindo, mas desta vez não ficava ofegante, as pernas já não
prendiam nem sentia o cansaço a cada pequena porção de terra que subia.
Aos poucos a tortura suavizava. Nenhuma tortura é suave, mas
esta dava impressão disso. As pedras aguçadas foram desaparecendo, o caminho
também alargava, e o piso já não era em terra. Agora estava a céu aberto,
pisando pedra bem entranhada na terra, os pinheiros afastavam-se de nós e o
calor apertava.
Não havia tempo para descanso, nem pausas. Não agora. Não
agora que estava a correr bem sem que nada me fizesse recuar. Aos poucos vejo a
carrinha dos bombeiros na travessia de estrada que existia, e onde estava o
ponto para abastecer. Era ali, mas ainda está bem longe.
Consoante avanço e serpenteio de um lado para o outro, pelo
menos nesta fase inicial, vou vislumbrando o topo, mesmo onde termina a subida.
Lá em cima no dia anterior, não dava para ter a real noção
da dimensão que aquilo era. O quão agressivo e incrível aquilo é. Não quis
muito focar no ponto mais alto, mas sim no intermédio, local onde ia abastecer
os flasks que já começavam a ficar “amassados” por não existir nada que os
preencha.
A carrinha vermelha vai aumentando de tamanho, e finalmente
vejo um pequeno grupo de pessoas no alto, e estrada. Ali estava provavelmente o
ponto médio daquele segmento, e de me rejuvenescer.
Estava feliz por ter água novamente, dali até ao próximo
abastecimento não iria certamente desidratar. Agora era a última secção da
subida, e se o piso mantivesse fiel ao que até ali foi, podia dizer que até era
relativamente fácil para o que esperava.
Mas não. Não ali, nem dali para a frente. O terreno
tornou-se completamente acidentado, com muita pedra solta, e com ligeiro
aumento da inclinação. O completo céu aberto e sem pontos de referência sem ser
o longo caminho até ao topo contribuía para o desgaste psicológico. Cerrava os
dentes, e olhava para cima de vez em quando para dar apenas uma espreitadela,
mas o piso obrigava a calcular o melhor pouso para apoiar o pé.
Vindos mesmo lá do fundo de tudo, mesmo atrás da pequena elevação |
O abastecimento estava logo ali, cerca de 200 metros e podia
finalmente alimentar. Era o que necessitava para terminar o último quilómetro
de subida até à torre meteorológica, e estava feito. Ainda perco algum tempo, e
na saída, tento correr devagar, mas não consigo.
Uma pequena má disposição estava a impedir de prosseguir em
condições. Vou tentando acalmar a coisa com água, em pequenas porções, e vou
minimizando a situação.
Até à torre onde terminava a subida segui a passo, só quando
estivesse em condições é que voltava a correr, fora isso não queria saber de
mais nada.
Ali estava ela, um dos pontos mais altos da Freita, a torre
que indicava o final da tortura.
Chegada às "Berlengas" |
A indisposição vai atenuando, e as pernas começam a
soltar-se um pouco mais. Não quero abusar, e mais resguardado vou progredindo.
Desço a colina em direcção à aldeia de Castanheira, e num
rápido desvio direcionamo-nos para Felgueira, bem lá em baixo.
Já estava recomposto, e quente novamente. A descida não tem
muita história, era relativamente acessível, e rápida de percorrer. Em pouco
tempo chegava a Felgueira, por entre as casas já antigas até ao ponto onde
havia começado naquela manhã fresca.
É sem dúvida uma prova enganadora. Uma má gestão na fase
inicial é o suficiente para condenar o resto da prova. É de facto uma prova
fantástica, trilhos diversificados, rolantes e duros, sem nunca saber o que
encontrar.
A Serra tem destas coisas, e a Freita tem destas coisas.
Esteve simpática comigo, deu-me alguns socos, mas consegui
sempre levantar.
Mostrou-nos sítios fantásticos, e terríveis, e esconde
muitos outros.
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