quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Freita SkyRunning - Fantástico


Já foram algumas as vezes que a explorei, não em todo o seu vasto comprimento ou altura, mas já vou conhecendo alguns pontos. Sempre que a visito, descubro novos locais, novos pontos, uns mais visuais que outros, mas sempre surpreendentes. São raras as vezes que não paro para contemplar alguma paisagem, nem que seja para uma simples fotografia daquela imensidão. Esta serra faz-me lembrar o quão pequenos somos, e a dimensão totalmente remota daquilo que vivemos no nosso dia-a-dia.
A Freita conquista-me cada vez que a visito, e ao mesmo tempo molda-me a mente. Quando a piso, penso que já estou habituado a ela, e que posso vaguear à minha vontade. Não podia estar mais enganado. Acabo sempre por recuar nas ideias e respeito-a, e só desta forma aquela rochosa serra me convida a entrar e aguarda o meu regresso.


Foi assim no primeiro fim de semana de Outubro. Dois eventos com características semelhantes divididos entre Sábado e Domingo. O primeiro era a novidade, com uma bruta subida ingreme, encosta acima num final de tarde. O segundo era a estreia para mim, na segunda edição de uma prova dura de roer.
Para aquele fim de tarde o “Freita Vertical”, como lhe chamaram, era na sua essência isso mesmo. Desde o fundo de uma colina, até ao topo da montanha, com a surpresa de terminar na torre meteorológica. As surpresas tendem a ser boas, neste caso foi agressiva, dado o facto de ter que subir 45 metros em escadas, após ca. de 4 quilómetros a “trepar”.
Eram 19 horas, e a luz do dia era escassa, e quando o primeiro partiu serra acima, rapidamente caiu o escuro da noite. Era difícil de os ver, apesar da excelente “varanda” onde nos alojamos para nos privar um pouco do vento que nos rodeava. Aguardamos alguns minutos, e finalmente começamos a ver o primeiro “pisca-pisca” bem lá no fundo. Um pequeno frontal que ao perto parece não conseguir iluminar mais que 20 metros, conseguia-se ver a uns 3 quilómetros de distância. Aos poucos vão surgindo outros “piscas”, e era assim que rapidamente se ia formando a única fonte luminosa que serpenteava aquela serra.
Aplaudimos todos que ali passaram ao nosso lado, e gritávamos um “força”, como se de alguma maneira aliviasse um pouco a dor ou sofrimento, mas que sabíamos que ia dar aquele incentivo extra.


O Hugo foi o único do nosso grupo que quis o desafio a dobrar daquela serra. E daquela noite só nos indicou que estávamos tramados para a etapa de Domingo. Mas isso já sabíamos, só ainda não percebíamos o quanto.

Aquela manhã fresca, não estava nas minhas contas, mas era animadora. Se me propusessem correr com manguitos num dia pouco assoalhado, ou com o mínimo de roupa, devido ao forte calor, a minha escolha cairia sob a primeira hipótese.
Dos vários “bitaites” que foi captando de boca em boca, uma coisa era certa, aquela subida que era comum aos dois dias, era agreste, e o segredo estava na gestão inicial, ou seja, nos primeiros 16 quilómetros de 25 na sua totalidade.
Eram duas distâncias que à chamada, para a partida, eram alvo de controlo de material. Foi tudo feito um pouco sobre o joelho o que se tornou um pouco confuso, retardando um pouco a inclusão de todos no pórtico atempadamente. Regras, são regras e nesta estou de acordo, para além de facilitar o trabalho a quem intervém em situações de risco, também pode ajudar o próprio em diferentes casos.

Controlei cada passada desde início, e em terrenos que conhecia não tive a ousadia de abusar.
Era um verdadeiro carrossel, logo à saída da aldeia de Felgueira. Sobe desce, desce sobe, entre estradões, ou trilhos carregados de pedra.
Seguíamos juntos, cerca de 4 a 6 atletas, misturando entre as distâncias de 42 KM e 25 KM, ultrapassando uns aos outros, mas sem nunca haver alguma fuga de quem quer que fosse.
Curta passagem pela aldeia de Cabrum, e voltava a subir até à Felgueira. Foi dos percursos mais engraçados, pelo meio da flora mesmo junto a um pequeno riacho, e moinhos abandonados, intercalando entre algumas escadas.
Agora, entre estradões, o grupo vai dispersando, e eu acabo por ser o primeiro a afastar, ficando sozinho. Conscientemente, fiquei mais alerta para a gestão, o que na prática era facilmente colocada de lado, dado a facilidade que havia em aumentar a passada, e saborear aquelas descidas apreciando os vales do nosso lado.


Era o regresso a Cabrum, a pequena aldeia, mas onde estava a maior presença de apoiantes ao longo do percurso, e onde estava o primeiro abastecimento. Naquele pouco tempo que ali estive, revi aquilo que havia feito até ali, e o que me restava.
O que ainda faltava vir, era a parte mais dura, subida louca, e terreno técnico. O que tinha deixado para trás, e que acabara de consciencializar, para além do longo carrossel foram as imensas ultrapassagens que até ali fiz. De facto, estava a correr às mil maravilhas, e tudo indicava estar bem posicionado. Foi o meu grande foco para o que se seguia.


De volta ao caminho, sem grandes correrias iniciais por entre campos, até a uma levada que a correr era uma impossibilidade.
Não era a melhor levada que havia percorrido. Talvez de todas as que até hoje fiz, a mais acidentada, e que menos confiança me deu, devido aos estreitos caminhos que a circundavam. Ainda vi a oportunidade de colocar integralmente o pé naquela água fresca, mas o solo era escorregadio, o que seria um cenário ainda pior. Foi assim até chegar a Paraduça, aldeia que aguardava chegar por conhecer em parte o percurso que nos ia levar até à subida. Ou assim pensei eu.

Dali até ao ponto inicial da grande escalada, sabia que ia entrar num estradão bastante rolante, e acabei por me soltar um pouco, mas sem grandes abusos. Estava convencido que já sabia o caminho por ali já ter passado, mas trocaram-me as voltas. Não me enganei na fase inicial, mas quando vejo uma tremenda encosta coberta por agulhas de pinheiros e um ou dois indivíduos a trepar, percebi que afinal não estava totalmente certo das minhas ideias. Foi massacrante aquela subida, seria uma pequena amostra, e um pequeno aquecimento das pernas.
Dei mais uso às pernas nesta pequena subida do que em todo o trajecto até ali já feito.

Chegava ao topo com a quase tentativa de um monte de explosões naqueles músculos mesmo acima do joelho que tanto se manifestavam.
Regressava de novo ao estradão que conhecia, e nos levava a descer até às Berlengas.
Desde aquele pinhal, o terreno rolante terminara. Dali para a frente seria verdadeiros desfiladeiros que iriam ser atravessados. A descida era mais um exemplo disso, terminando mesmo junto ao rio.
Dali para a frente seria uns cerca de 4 quilómetros com ca. 800 metros D+.

Pequena perspectiva da subida
Enganava-me, pensando que seria canja. O início não me era desconhecido, entre os imensos degraus das escadas do martírio. Penso que toda aquela escadaria seria bem mais leve que aquilo que fizemos. Fugimos dos degraus e descemos novamente ao rio, e aí sim iniciava-se a verdadeira tortura.
Não encontrava as fitas, nem se avistava trilho, achava estranho, as marcações foram sempre impecáveis, ali estava alguma coisa a correr mal, algum deslize. Quando olho mais em meu redor, consigo ver uma fita mesmo por cima de mim, mesmo no cimo de uma rocha um pouco aguçada que escondia o trilho entre a vegetação. Era o princípio da escalada, com a ajuda das mãos, e o forte apoio dos pés em qualquer apoio que aquela rocha tivesse, e com pequenos impulsos para a subir. Chegava ao trilho, contornava um pouco a rocha e mais do mesmo, fitas sempre acima de mim, e mais rochas para trepar.
Não estava a dar, assim não ia conseguir.
Tinha conseguido chegar ali em perfeitas condições, mas agora estava ofegante, sempre com sede e com receio que a água não desse para chegar ao abastecimento que existia a meio da subida. Cada passo que dava era um sacrifício, as pernas estavam duras, sentia cansaço e não estava a dar para continuar. Queria sair dali, e abrandar toda aquela tortura, mas estava a ser complicado.

Muita coisa me veio à cabeça, má gestão, desidratação, cansaço acumulado, inúmeras hipóteses…
- “Calma João. Isto é somente uma fase, recompõe-te e tudo irá correr bem.”
Parei ali no meio daquelas rochas, entre os arbustos. À minha frente, iam-se distanciando aos poucos, o que não me incomodava, afinal só queria era sair dali. Atrás não vinha ninguém, por isso não impedia a passagem de ninguém.
Fecho os olhos e respiro fundo umas, duas ou três vezes, e fico sereno. Tomo um gel, verifico a água que me resta, dando uns pequenos goles para ajudar a “empurrar”.
- “OK. Esta é a água que me resta até meio da subida. Lá abasteço e logo se vê. Vamos lá João. Tu consegues”.


Mantinha a cabeça erguida em procura de fitas. E pé ante pé, lá fui prosseguindo, mas desta vez não ficava ofegante, as pernas já não prendiam nem sentia o cansaço a cada pequena porção de terra que subia.
Aos poucos a tortura suavizava. Nenhuma tortura é suave, mas esta dava impressão disso. As pedras aguçadas foram desaparecendo, o caminho também alargava, e o piso já não era em terra. Agora estava a céu aberto, pisando pedra bem entranhada na terra, os pinheiros afastavam-se de nós e o calor apertava.
Não havia tempo para descanso, nem pausas. Não agora. Não agora que estava a correr bem sem que nada me fizesse recuar. Aos poucos vejo a carrinha dos bombeiros na travessia de estrada que existia, e onde estava o ponto para abastecer. Era ali, mas ainda está bem longe.
Consoante avanço e serpenteio de um lado para o outro, pelo menos nesta fase inicial, vou vislumbrando o topo, mesmo onde termina a subida.

Lá em cima no dia anterior, não dava para ter a real noção da dimensão que aquilo era. O quão agressivo e incrível aquilo é. Não quis muito focar no ponto mais alto, mas sim no intermédio, local onde ia abastecer os flasks que já começavam a ficar “amassados” por não existir nada que os preencha.
A carrinha vermelha vai aumentando de tamanho, e finalmente vejo um pequeno grupo de pessoas no alto, e estrada. Ali estava provavelmente o ponto médio daquele segmento, e de me rejuvenescer.

Estava feliz por ter água novamente, dali até ao próximo abastecimento não iria certamente desidratar. Agora era a última secção da subida, e se o piso mantivesse fiel ao que até ali foi, podia dizer que até era relativamente fácil para o que esperava.
Mas não. Não ali, nem dali para a frente. O terreno tornou-se completamente acidentado, com muita pedra solta, e com ligeiro aumento da inclinação. O completo céu aberto e sem pontos de referência sem ser o longo caminho até ao topo contribuía para o desgaste psicológico. Cerrava os dentes, e olhava para cima de vez em quando para dar apenas uma espreitadela, mas o piso obrigava a calcular o melhor pouso para apoiar o pé.

Vindos mesmo lá do fundo de tudo, mesmo atrás da pequena elevação
A minha vista apenas aguardava a ver aquelas pedras aguçadas onde na noite anterior me sentei para ver os “trepadores”. Sabia que iria ser complicado atravessa-las, mas dali para a frente as coisas melhoravam. Na única hipótese que tive de colocar um pequeno trote, rapidamente sou interrompido, ali estavam elas. Seria apenas uma questão de alguns metros e passos bem orientados e estava feito.

O abastecimento estava logo ali, cerca de 200 metros e podia finalmente alimentar. Era o que necessitava para terminar o último quilómetro de subida até à torre meteorológica, e estava feito. Ainda perco algum tempo, e na saída, tento correr devagar, mas não consigo.

Uma pequena má disposição estava a impedir de prosseguir em condições. Vou tentando acalmar a coisa com água, em pequenas porções, e vou minimizando a situação.
Até à torre onde terminava a subida segui a passo, só quando estivesse em condições é que voltava a correr, fora isso não queria saber de mais nada.
Ali estava ela, um dos pontos mais altos da Freita, a torre que indicava o final da tortura.

Chegada às "Berlengas"
Tinha que apressar o passo, o vento arrasta um ar mais fresco, e começo a arrefecer. A corrida tinha que ser improvisada de alguma forma, e lá tento dar os primeiros passos.
A indisposição vai atenuando, e as pernas começam a soltar-se um pouco mais. Não quero abusar, e mais resguardado vou progredindo.

Desço a colina em direcção à aldeia de Castanheira, e num rápido desvio direcionamo-nos para Felgueira, bem lá em baixo.
Já estava recomposto, e quente novamente. A descida não tem muita história, era relativamente acessível, e rápida de percorrer. Em pouco tempo chegava a Felgueira, por entre as casas já antigas até ao ponto onde havia começado naquela manhã fresca.


É sem dúvida uma prova enganadora. Uma má gestão na fase inicial é o suficiente para condenar o resto da prova. É de facto uma prova fantástica, trilhos diversificados, rolantes e duros, sem nunca saber o que encontrar.

A Serra tem destas coisas, e a Freita tem destas coisas.
Esteve simpática comigo, deu-me alguns socos, mas consegui sempre levantar.
Mostrou-nos sítios fantásticos, e terríveis, e esconde muitos outros.
Misteriosa esta Freita.




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