-
“Estou! Estás onde?”
-
“Estou em Tapeus, no abastecimento à tua espera e tu?”
-
“Ainda estou com 22 KM, a chegar ao abastecimento do quilómetro 25, e se calhar
fico por aqui, não estou em condições, vai ser para sofrer o resto da prova.”
Sicó,
a prova que me chamou atenção, e me deu a conhecer o trail, ainda era eu um
rebento no mundo da corrida. Em
2017, foi a primeira vez que percorri aqueles
trilhos, e fiquei fã, de forma a ter repetido em
2018.
Dois
anos depois, regresso, mas desta vez para uma distância mais demolidora, mas
que me fez sentir como algum tempo não sentia. Aquele nervoso miudinho, aquela
noite mal dormida e inquieta a antever o que ia fazer, ou como o iria fazer.
Tudo isto devido ao facto de me ter preparado para tal, foram poucos meses, mas
com foco somente neste dia, queria ter treinado mais, mas dentro daquilo que me
foi possível, foi o que consegui, e sabia que tinha hipóteses de a concluir, e
só isso já me fez ambicionar mais que o que até ali havia feito.
|
Créditos na foto |
Foi
uma noite inquieta que me fez acordar sobressaltado logo pela fresquinha, manhã
gélida, e com vontade de querer estar um pouco mais no quente da cama, mas
tinha que ser. Já foram várias as vezes que fui correr com menos horas de sono,
não ia ser agora que isto me ia travar.
Chegado
a Condeixa e com alguma pressa, fui encontrar o autocarro que nos levava
directamente para Santiago da Guarda, local de início da distância dos 57 KM, e
cruzamento de percurso para quem vai na distância maior (111 KM).
Foi
o recordar de um ponto que mais critiquei no
Vouga Trail, com o tempo de espera
que tivemos que suportar até à hora de partida, com cerca de 1.30h em pé.
Valendo somente o facto de podermos estar abrigados da chuva e do frio, num
complexo monumental local.
A
ansiedade foi acalmando, e a preguiça apoderando, estava com algumas
reticências se o iria conseguir, já que antes tinha tantas certezas que era
possível, foi assim que me arrastei para fora do edifício, e comecei a tentar
ambientar-me ao clima fresco e chuva que se previa pelo menos para a fase
inicial da prova. Eram 09.30h, e o gelo foi rompido, estávamos finalmente no
terreno, rumo ao que para mim em grande parte era desconhecido, tirando algumas
secções por conhecer das edições anteriores.
Foram
algumas centenas de metros até entrar em trilho finalmente, que não tardou em
interromper a velocidade de inúmeros que ali se aventuraram a apressar na fase
inicial.
A
pedra solta, e riachos de água devido à chuva que já havia terminado, foi o
suficiente para atrasar uns quantos, e deu para pelo menos dispersar-me da
grande maioria.
Tentei
acompanhar o Fábio naquela fase inicial, mas a confusão era tanta que acabei
por o perder logo ali, e não conseguindo mais alcançar, pensei para comigo
mesmo, se é para tentar fazer isto mais sério e já que estás capaz de o fazer,
sozinho terá outro sabor.
|
Pouco antes de partir. A habituar ao frio. Foto de "Christine François Wilman" |
A comunhão do percurso com os 111 KM foi de alguma forma engraçada, ver toda
aquela gente que enfrentava já umas longas horas e muitos quilómetros nas
pernas, sem eu nunca deixar de dar uma palavra a cada um que passava.
Estranhava
os já mais que conhecidos estradões do Sicó ainda não terem aparecido, e após
5/6 quilómetros lá surgiram, ainda que um pouco tímidos, devido à grande
afluência de água.
O
caminho tornava-se perigoso, fazendo os caminhos um pouco mais artístico, não
fosse a grande possibilidade de dar várias piruetas seguidas em tão poucos
metros. A lama já mais que pisada fazia com que deslizasse a cada passada,
tendo perdido a conta de vezes que não me passou pela cabeça que seria ali que
ia dar uma grande queda. Felizmente o susto maior que tive, foi numa pequena
descida em que ia caindo para trás, e provavelmente desceria o resto sentado.
Felizmente, não passou de um susto.
O
tempo já havia melhorado bastante, não se sentia tanto frio, a chuva
desapareceu, foi tréguas do S. Pedro para connosco, e deu para desfrutar mais
do percurso. A primeira grande subida apareceu já aos 8/9 KM, até atingir o
ponto mais alto da prova. Deu para suar, não que fosse muito agreste, mas deu
para puxar bem pelas pernas, dado a grande amplitude de movimentos trepando
algumas rochas. A descida apareceu algo que tímida, sem grande inclinação, mas
um pouco abundante em lama, e não seria de esperar outra coisa. Procurei sempre
as correr pela lateral do trilho, onde existia vegetação e não era tão
perigoso, havendo algum atrito e menor risco de cair.
|
A chegar ao topo do Monte de Sicó. Créditos na foto |
Foi
descer, e bastante, num trilho em que nem era preciso procurar as marcações
para o fazer na totalidade. Sempre com pedra à mistura, mas com mais segurança
do que havia sido feito até ali, descendo a colina do Monte do Sicó, e chegar a
“Pousadas Vedras”, para o primeiro abastecimento. Foi o torço mais longo, entre
abastecimentos, e com já 16 KM, fazendo ali uma rápida análise, sentia-me
perfeitamente bem, não tinha dores, nada de cansaço, sentia perfeitas condições
para correr, estava maravilhado. Afinal o treino que fiz estava a dar
resultados.
Procurei
não perder muito tempo ali, apenas alguns minutos, não queria desleixar tanto
na alimentação como hidratação, e fiz-me ao caminho.
A
saída fez-se estrada fora em busca do próximo trilho, com ligeiras subidas, em
que tentei voltar a atingir os ritmos que vim até ali.
Foram uns poucos metros para abrandar e caminhar. – “Acabei de comer, parei e
estou a arrancar, o corpo manifesta-se e não quer andar. Aguardemos um pouco” –
Pensei naquele momento, enquanto tentava recuperar forças para voltar a correr.
Não
demorou muito, mas foi algo forçado, e lá consigo voltar a correr, ainda que
com folego algo descontrolado, e um cansaço a querer manifestar-se. - “Noite
mal dormida? Será que vai complicar-me as coisas?” – Uma série de questões,
começavam a surgir na cabeça, e ao mesmo tempo desanimava. Afinal tinha
treinado para aquilo, queria fazer uma prova tranquila, com ritmo mais forte, e
sem grande cansaço acumulado.
Valeu
mesmo os trilhos, os single-tracks que iam surgindo e que tanto adoro daquela
zona, num constante mudança atípica de cenários. A entrada no trilho de Poios
foi fantástica, coberto pela vegetação, e num caminho a rasgar o piso até ao
fundo de um vale.
Lembrava
daquele local já visto por outras crónicas que fui lendo de quem ali já passou,
e estava muito curioso com aquilo.
Infelizmente
não consegui usufruir como queria, foi como uma espécie de cansaço me tivesse
apoderado. Senti-me fraco e com sérios problemas para avançar, já sendo um
esforço dar o próximo passo. Pego numa barra e empurro goela abaixo em conjunto
com água para evitar problemas maiores. Estava cariz baixo, até há pouco tempo,
estava a sentir-me em perfeitas condições, a num ápice as coisas mudaram
radicalmente e com tão poucos quilómetros. Fui de ideal a besta num instante,
morri completamente.
|
O fantástico Vale dos Poios, onde não consegui desfrutar. Foto retirada do site www.greentrekker.pt |
Era
um zigue zague encosta acima num monte rochoso que se tornou um tormento,
começo a sentir-me cada vez mais fraco, e com poucas condições para fazer a
prova em completo. Foi por volta dos 21 / 22 quilómetros que tomo a decisão –
“Aos 25 KM, se não me sentir bem, por ali fico. Não quero sofrer até ao
final.”. Já num trilho que virava o monte, pego no telemóvel, e ligo para a
minha namorada que estaria num dos abastecimentos há minha espera,
provavelmente em Tapeus, quilómetro 33.
-
“Estou! Estás onde?”
-
“Estou em Tapeus, no abastecimento à tua espera e tu?”
-
“Ainda estou com 22 KM, a chegar ao abastecimento do quilómetro 25, e se calhar
fico por aqui, não estou em condições, vai ser para sofrer o resto da prova.”
-
“Mas estás bem? Não desistas, tu consegues”
-
“Não sinto totalmente bem, estou fraco e sem grande força para continuar, e não
quero ir em sofrimento até ao final. Vou ver como me sinto no abastecimento.”
-
“Vai. Tu consegues, não desistas. És capaz.”
Estava
a arrastar-me, e estava a ser ultrapassado constantemente. O sol espreitava por
diversas vezes, e abafava o clima naquela encosta, e faltavam uns míseros 2 KM
para o abastecimento, até conseguir colocar um género de trote.
A
minha cara, naquele momento, devia ser algo semelhante a de alguém que
estivesse a desfalecer, tal era o desalento e o esforço que fazia para dar um
próximo passo.
Estava
no abastecimento, que em circunstâncias normais, já teria saído dali para foram,
mas foi onde procurei repousar e hidratar bem, isto deveria ser uma
desidratação, e com a reposição de líquidos e comida, isto vai lá.
Enquanto
ali estou, vou vendo muitos chegar e partir rapidamente, inclusive a Márcia,
que me veio perguntar se estava bem, tendo explicado a situação, e afirmando o
que já pensava, que pelos sintomas só poderia ser desidratação.
Após
verificar que estava bem, arrancou, visto estar bem posicionada, e iria tentar
o melhor que conseguisse dali para a frente.
Ainda
aguardei mais uns minutos, e após bastante líquidos, e comida, decido retomar,
caso me sentisse mal, dou por encerrado e volto para trás. Pego numa água das
pedras de limão, que já me ajudou noutras provas, e bebo, enquanto recordo
aquela conversa telefónica, que me moralizou e me deu confiança para não
desistir, e chegar à meta. Foram poucas as palavras, mas foram as suficientes e
as mais assertivas naquele momento
Aos
poucos começo a sentir frio, e opto por vestir o impermeável que trazia na
mochila. Não queria prejudicar o desgaste do corpo, com o frio do exterior.
Estava
decidido, sigo caminho, e vamos ver o que acontece…
Saio
de Poios, e mal coloco o pé fora do abastecimento, sinto uma corrente de ar
fresco que me deixa gelado. Tento sair dali rapidamente, e ainda em modo de
caminhante prossigo até começar a sentir o suficientemente bem para voltar a
correr. Batia o dente de tanto frio que sentia, foi ali que vi o quão
fragilizado estava, e uns 100 metros depois, tento um trote, e a coisa
funcionou.
O
corpo respondeu positivamente, e sem queixas, e com o psicológico a dizer para
não exagerar, deixar as coisas andar, e daqui a pouco vemos o que se sucede.
Os
quilómetros foram passado, e não senti quebras, bem pelo contrário, melhorava
com o passar do tempo e isso ajudou a equilibrar-me mentalmente novamente.
Ia
voltando a recuperar lugares atrás de lugares, ainda sem exageros, com ritmos
ainda que contidos.
|
Daqueles abastecimentos fartos em tudo. Foto de "Christine François Wilman" |
Olho
para o relógio e vejo que estou a chegar aos 33 KM, onde estava o meu apoio e
local onde pretendia parar para comer algo mais consistente. Aperto mais o
ritmo, e tudo indicava que sim, que o mau momento ficara para trás, e estava
rejuvenescido. Foi como se tivesse caído a um poço sem saída, e alguém me
tivesse arrancado dali.
Mesmo
a chegar ao abastecimento, apanho a Márcia de novo, e apanho a minha namorada e
os meus pais. Agradeço as palavras, e indico que já estou bem.
Entro
de rompante no abastecimento e bebo água e mais água. Uma canja que me confortou
o estômago, e me soube pela vida, enquanto falo com a família a explicar o que
se tinha sucedido. Agora estava diferente, estava energético, e queria arrancar
o mais rápido possível. Despeço deles, e combinamos ver em Casmilo, e arranco
com a Márcia.
Prometia
ser a etapa mais dura de todo o percurso, ganhando 600 D+ em mais ou menos 10
KM, numa longa subida assim que saímos do abastecimento.
A
subida era realmente longa, mas acessível, não sendo muito inclinada, nem
técnica, sendo os últimos 300 metros talvez o que complicasse mais todo aquele
segmento. Acabo por deixar a Márcia para trás, e sigo sozinho.
Assim
que consegui atingir o topo, não perdi muito tempo, e consegui rapidamente
impor ritmo de corrida, e seguir os longos estradões que ligam as ventoinhas
eólicas. O extenso estradão foi uma manobra de nos desconcentrar, e após uma
ligeira descida, obriga-nos a finalizar numa longa subida. Viramos o monte, e
voltávamos a descer, estava finalmente a fazer o que queria desde o tiro de
partida, mas que infelizmente havia sido interrompido entre os 16 e 25 KM.
Isso
já estava para trás das costas, seria eu contra o tempo agora, e tentar
recuperar o quer que fosse possível.
|
Descer em direcção às Buracas de Casmilo. Foto de "Christine François Wilman" |
A
descer estava a conseguir impor ritmos altos sem abusos, tanto é que um dos
comentários de um grupo que passei, já com cerca de 40 quilómetros nas pernas,
era que estava a participar na prova dos 25, tal era a velocidade e a frescura
com que estava.
Eu
sabia que tinha treinado para aquilo, eu sabia que conseguia, só demorou um
pouco a coisa realmente aparecer.
A
descer o estradão, vou avistando as buracas, as famosas buracas, e terreno
conhecido para mim, só que desta vez em sentido contrário.
O
trilho das buracas, é dos meus preferidos. Adoro aquele single-track que vai
tricotando as árvores que nos escondem do sol, É um zigue-zague constante, mas
divertido, tendo apenas que estar atento às imensas raízes e pedras para não
dar uma queda aparatosa. Para sair dali, só em subida, com uso dos 4 membros em
algumas circunstâncias. E só depois então num caminho todo em pedra, até chegar
a Casmilo.
|
A chegar a Casmilo. Créditos na foto |
Era
o penúltimo abastecimento, e continuava cheio de energia. Reencontrava a
família, e ficaram admirados de já ali estar, sendo a fase mais complicada de
todo o percurso.
Eu
estava realmente cheio de energia, e mesmo assim não deixei de me precaver no
abastecimento. Despedi-me deles, e agora só nos voltaríamos a ver no final, em
Condeixa. Só algo mal antecipado é que me impediria de terminar a prova.
Tenho
um estômago que às vezes parece uma princesa, e quando saí do abastecimento vi
que não poderia desatar a correr, estava com a barriga pesada, e se o fizesse iria
correr mal.
Ainda
andei uns valentes metros em modo de caminheiro, estradão fora, até começar a
descer, só então puder voltar a correr, e fui-me sentindo melhor. Chegava a
Serra de Janeanes, e não segui pelo habitual caminho que fizera nos 25 KM e nos
levava até ao Poço por um longo estradão que detestava.
Desta
vez, atravessamos a aldeia, e sigo por um novo caminho, pelo menos para mim,
que entre campos, a coisa se tornou mais agradável, tendo apenas sido
interrompido, por mais uma “escalada”, curta mais trituradora. Saí dali
rapidamente, e volto a meter-me a caminho até ao último abastecimento no Poço.
Faltavam
uns 5 quilómetros até ao final, e não demorei muito, enquanto o pessoal da organização
pediam para irmos agora com atenção, por ser um trilho perigoso.
De
facto é, escorregadio, e acidentado, mas lindo q.b., sendo o meu preferido de
toda a prova.
Vou relembrando
o caminho ao mesmo tempo que o transponho, num sobe e desce ligeiro, parecendo
estar num carrossel. Até então ali chegar, a uma entrada “desenhada” no meio da
vegetação, e nos levando para um mundo diferente.
Após
imensos quilómetros expostos ao céu aberto, foi como se entrássemos num bosque
selvagem, num trilho paralelo ao leito do rio seco. Mas nem por isso o piso era
menos escorregadio, e cada passo era um perigo para toda a estrutura óssea de
quem preze por ela.
Não
temos muitas oportunidades para correr, mas também sem tempo para descanso. Nos
momentos que não corremos, temos que estar atentos onde colocamos os pés, seja
a subir, seja a descer, quando corremos, qual é o melhor caminho a seguir, sem
que se coloque o pé em falso, ou enfiemos a cabeça em algum tronco de árvore
que se metem pelo caminho. Adoro aquele trilho, mas desta vez queria sair dali
o mais rápido possível, sem quedas.
A
subida por uma escadaria improvisada colina acima significava o final da
tortura que aquele segmento nos dá.
Assim
que vejo que chego ao cimo, e entro no estradão, estava feito. Ainda que
faltasse cerca de 2 KM até ao final, dificilmente não terminava a prova.
|
Mais uma das famosas buracas. Foto de "Christine François Wilman" |
Cerro
os dentes, endireito-me com o caminho, e desato a correr. Faltava muito pouco
para finalizar. Passava pela ruínas de Conimbriga, Condeixa-a-Velha, e chegava
a Condeixa.
O
meu pai aguardava-me junto ao início da última subida que nos levava até ao
centro, e acompanhou-me naqueles últimos metros até à meta. Agradeço aqueles
últimos metros, e vou em direcção à meta, passo pela minha mãe e namorada, e
também dou um “high five”.
Cerro
o punho, e festejo. Citando as palavras do speaker Hugo Água “Olhem para a
felicidade na cara deste atleta”.
Foram
57 KM, feitos com as pernas e com o coração. Como disse de início, foi
provavelmente a prova que mais me dediquei no que treinos diz respeito, sabia
que era capaz de fazer a distância, e que poderia fazer uma boa prestação.
Infelizmente o meu corpo numa zona prematura deitou-me abaixo, fisicamente e
psicologicamente. Valeu o apoio de fora da minha família, e as palavras da quem
acreditava em mim, que era capaz de concluir. Só aí consegui traduzir o meu
treino na prova. Daí dois dias depois, estar sem dores de pernas, nem desgaste
físico.
Sicó,
foi o trail que me chamou para os trilhos, e onde adoro correr por todo o
envolvente que esta prova nos dá.
Grande
apoio durante todo o percurso, abastecimentos fartos, marcações excelentes,
trilhos fantásticos, enfim uma panóplia de argumentos que caracterizam este
trail como um dos mais ricos a nível nacional, não fosse a quantidade de
atletas que todos os anos alinham no tiro de partida, seja na distância que
for.
Tem
os seus defeitos? Tem. Mas tem muita qualidade.