quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Vouga Ultra Trail - Inesperado


Hora de partir. Créditos na foto

Até parece já tradição, ano novo, e vou para Sever do Vouga arrancar o ano em trilhos. Não é no sentido literal, mas está lá quase, depois de uma primeira edição estranha em 2019, uma segunda versão em 2020 já melhorada, 2022 foi com algum esforço, ano para a terceira edição.
Eu, para dar continuidade à já habitual presença, quis alterar um pouco a dimensão do desafio, e arrisquei-me na ultradistância com 55 quilómetros e 2400 metros de desnível positivo.
Nos tempos inconstantes que vivemos, foi um arriscar tudo, era treinar sem ter certezas se o evento seria adiado ou cancelado, fruto dos elevados números de casos Covid, ou mesmo eu testar positivo.
O minimizar contactos, tanto para me salvaguardar a mim como a quem me rodeia não foi o suficiente, e antes duas semanas, acabei por ser também eu vitima desta pandemia. Em circunstâncias normais, estaria livre dois dias antes da prova, e sem saber que consequências dali poderiam surgir, foi momento de pensar e avaliar a participação.
A prova estava confirmada pela organização que iria avante, a minha inscrição não podia ser adiada para uma futura edição. Fiz duas corridas antes do evento, para conseguir avaliar o quer que fosse possível avaliar, se era possível estar no tiro de partida.

Não houve problemas respiratórios, apenas algum cansaço no final de uma das duas corridas, que suscitavam alguma desconfiança se era possível concluir ou não.
Dúvidas houvessem, era mais que óbvio que cansaço não me ia impedir, a respiração estava controlada, por isso foram motivos suficientes para me agarrar ao desafio.
E assim foi, pelas 07:30h debaixo de nevoeiro e de uma persistente chuva miúda, liguei o frontal, e parti para o meu primeiro desafio de 2022.
Da equipa eramos três, o Fábio sumiu-se em pouco tempo, o Élvio ainda seguia ao meu lado, mas com a confusão inicial, acabei por perder de vista.
Foi sempre a subir pela estrada debaixo ainda das luzes públicas que fomos progredindo, até à chegada dos primeiros trilhos, onde o frontal era fundamental.

Créditos na foto

A primeira fase da prova é praticamente paralela a um pequeno troço de rio, que por si só já é um ambiente húmido. A chuva que não dava tréguas, oleando o percurso e dificultando a progressão. A fila era inevitável, e no longo single track segui a tentar esquivar-me ao terreno mais enlameado fruto já de quem havia ali passado.
Aproveitava algumas zonas de estradão, onde o piso era mais rígido e afastava-me da fila, assim conseguia ir à minha vontade. Foram quase oito quilómetros até Vila Fria, local do primeiro abastecimento e ponto de arranque até ao ponto mais alto da prova. Iniciei com um trote ligeiro que em poucos instantes foi substituído por uma passada forte e constante.
Não arrisquei em momento algum, tinha tudo controlado respiração, esforço físico, hidratação e comida, que fez descontrolar a autoconfiança, passando para níveis altos repentinamente.
Efeito esse que foi o suficiente para justificar a mim próprio que deveria abandonar a zona de conforto e arriscar numa progressão mais rápida. Chegava ao Arestal, ponto mais alto, com quase 15 quilómetros feitos e segundo abastecimento. A confiança estava a elevar a fasquia, não senti desconforto algum, e não sentia dificuldades que pudessem advir do covid, ou pelo menos mentalizei-me disso.

A meio da subida para o Arestal. Créditos na foto.

O terreno já havia melhorado há bastante tempo, não senti dificuldades em progredir, a lama já não era um problema, e mesmo a transição entre levadas era feita com bastante facilidade, por entre as diversas aldeias.
A separação de abastecimentos com maior enfase, cerca de 12 quilómetros, surgiam nesta altura, onde era igualmente na sua maioria feito de forma descendente.
A descer talvez perdesse um pouco de terreno para quem ali vinha comigo, mas em plano ou a subir acabava por ir apanhando um a um, acabando por se formar um pequeno grupo onde acabei por tomar as rédeas durante bastante tempo.
Comecei a meter o “tico e o teco” a conversar entre eles, e pensar que não poderá ser sempre assim, a manter-se desta forma, acabarei por quebrar. Abrandava na tentativa de alguém avançar e liderar o grupo, mas ninguém o quis fazer.
A fase com maior inclinação que nos levava até ao rio Vouga, forçou a que o grupo acabasse por partir, o piso tornou-se perigoso, para além da lama, algumas pedras soltas obrigaram a redobrar os cuidados, e só mesmo no fundo com uma vista deslumbrante sobre o rio é que as coisas acalmaram.

Acalmou de certa forma, pelo menos o meu ritmo acalmou, mas o desgaste nem por isso, comecei a sentir um ligeiro desconforto, ainda que tolerável. Dali até ao abastecimento em Amiais, o sobe e desce repentino era sistemático, tendo me dado uma ligeira marretada que não davam bons sinais para a continuidade. Será do covid? Será de ter estado uns dias fechado em casa? Terei abusado?
Foram as questões que começaram a imperar na cabeça, e não surgiam respostas.
Chegava ao abastecimento com quase vinte e oito quilómetros, e preparava a minha bebida como havia feito no abastecimento anterior, o pó mágico para dentro da garrafa, e pedi que me enchessem a garrafa. Não sei o que aconteceu, mas para meu espanto o pó havia desaparecido da garrafa, não sentia o sabor da mistura, após ter deixado para trás o abastecimento.

As fantásticas cascatas. Créditos na foto

Tentei não gerar mais problemas interiores, aceitei e tentei da melhor forma possível dar continuidade ao meu caminho, alguma coisa há de dar.
A descer a coisa ainda ia, mas a subir estava a ser desconfortável, e na última divisão de distâncias (35 e 55), virei para a barragem, e mentalizei-me que era uma fase. Não faço a correr, vai a caminhar, quando melhorar logo se prossegue. A travessia da barragem, indicava a longa e inclinada segunda subida, que acabou por ser feita a caminhar, sendo ultrapassado constantemente, e ficando apenas com outro que me seguia sem mostrar qualquer interesse em avançar.
Este pequeno monte estava a ser uma pérola cheio de surpresas, com subidas curtas e ingremes, descidas rápidas, e repete. A subir era impensável correr, a descer queria andar mais depressa, mas ao fazê-lo ia estar a esforçar algo que se estava a recompor.

Fico sozinho, e arrisco novamente uma corrida que me leva até ao abastecimento em Alagoa dentro de uma pequena cave. É o abastecimento que demoro mais tempo, aproveito o chá quente que servem e me vai reconfortando o estômago, e descanso um pouco. Ao fim de alguns minutos, e já abastecido retorno ao percurso, sem grandes pressas, mas cheio de frio. O tempo que estive parado, foi o suficiente para arrefecer o suficiente para tremer um pouco os lábios. O chá estava a fazer efeito, estava a sentir bem melhor, e o próprio terreno pedia para correr, e acabei por ceder. Ainda que contido, dei os primeiros passos num suave trote, até me sentir bem o suficiente e aumentar a velocidade aos poucos. Fui conseguindo aquecer, e já estava de volta à prova na integra. Verdade que a zona ajudou, era um bónus, mas com a chegada de zonas mais técnicas junto ao rio, não houve impedimentos.

Só fotos da cascata de Cabreia. Créditos na foto.

Não surgiu mais contratempos, e até ao último abastecimento em Paradela consegui sempre um ritmo mais ou menos certo.
Já restavam poucos quilómetros, mas faltava o que para mim ia ser o maior desafio nesta distância, a última subida até quase à meta.
Não demorou muito a chegar à ecopista do Vouga, que nos embalou durante um quilómetro num piso plano e limpinho até a uma encosta que nos metia logo com 20% de inclinação. Conhecia aquela encosta, ainda que feita em sentido contrário, e sabia o quão inclinada era, mais o acumulado e quilómetros que as pernas já sentiam, ia ser uma aventura chegar à meta. Sintonizei a passada, inclinei o tronco ligeiramente para a frente, e as mãos atrás das costas, e lancei-me até ao topo. Quando visivelmente o caminho nos convidava a correr, as pernas não queriam responder, sendo as descidas o único troço favorável para tal. Ou então com a meta à vista… Começo a reconhecer o local, sorrio e sem saber como, todos aqueles músculos das pernas contraídos se alinham e levam-me até à meta.

Tudo o que antecedeu a prova, certamente contribuíram para que fosse uma conquista inesperada. Houve momentos antes e durante que duvidei se seria capaz de o fazer por ter estado 10 dias fechado em casa. Verdade que o treino já estava feito, e acabei por fazer algum reforço em casa, mas a falta de regularidade aliada às possíveis mazelas que podiam surgir do covid, tornavam o desfecho imprevisível.
Já o evento em si, apenas com três edições, mas com um caminho positivo e crescente. Não que desgoste de correr com chuva, mas um dia de céu aberto tornavam o percurso bem mais interessante. Situação que obviamente não torna a organização responsável, só contribuía para realçar o percurso.

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