terça-feira, 9 de julho de 2019

Ultra Trail Serra da Freita 65KM - Brutalidade


É um abuso. É de “Bradar aos céus” o “martírio” que passamos para fazer esta “besta” de prova. É a melhor analogia que posso fazer para descrever o Ultra Trail Serra da Freita (UTSF). Não é para qualquer um, e não me identifico como mais um, porque ninguém dali sai com sentimento de vitória, mas sim de sobrevivente. Porque a vitória é sempre daquela serra, a imponente Freita que nos vai triturando em mil pedaços, e se lhe apetecer, só se lhe apetecer, lá nos deixa continuar o nosso caminho.
É mágica de facto, tem tanto de bela como de dureza, desta forma não deixa ninguém indiferente.
Foi a prova mais insana que fiz até ao momento, se julgar pelo tempo decorrido, como pela distância, como pelo desnível. Já nem menciono o terreno, porque esse, bem esse … é de triturar pernas, pés, tornozelos…

Créditos: Organização

Eram 6 horas da manhã quando a brisa matinal ainda ocultava o forte calor que estava por vir. Estava em silêncio o pavilhão onde nos organizávamos para um breve briefing, como fosse uma introspecção de cada um daqueles que se iam aventurar para os 65KM ou 100KM de pura dureza pela Serra da Freita.
Não me manifestava, nem parecia tão perdido em pensamentos de como seria, ou como iria fazer, aquela que ia ser a provavelmente mais louca de todas as que fiz até ao dia.
Talvez pela ainda presente sonolência do meu corpo, que ainda preferia estar confortavelmente deitado num colchão e descansar, invés de ali estar a preparar-se para se derreter em 65KM de distância em pura serra.

O nosso briefing. Créditos na foto

Segui toda aquela gente até à estrada principal, local onde se dava a partida, e onde pelo terceiro ano consecutivo marcava presença.
Não havia pressas, nem tempos a cumprir, apenas desfrutar e objectivamente chegar ao final sem mazelas, e com sorriso na cara, esse sim era a única coisa que queria cumprir.
Assim me juntava com a Márcia, Fábio e Hugo junto ao final do pelotão, tínhamos tempo, mais que tempo, e mesmo após Moutinho ter dado o sinal de partida, via-se muitos que partilhavam da mesma ideia, não entrando em euforias do momento.
Nada de novo na primeira ascensão ao alto da serra, um segmento de estrada para dividir mais os atletas, até entrar nos trilhos verdadeiramente ditos.
Single-tracks, levadas, terra preta, e muita subida, a mais longa, e mais fácil subida de toda a prova, que serpenteava a encosta da serra do lado de Arouca, até ao Detrelo da Malhada, onde estava o primeiro abastecimento.

A vista do miradouro Detrelo da Malhada. Créditos na foto
O sol, aquela estrela quente, já começara a esquentar todos os que se aventuravam nas encostas despidas de vegetação, ainda nada de grave, mas o dia ainda havia começado há pouco mais de hora e meia.
Já seguia somente na companhia do Fábio alguns quilómetros, e assim nos mantínhamos, no alto da serra, em direcção ao próximo abastecimento.
Não havia caminho no planalto da serra, por entre o piso empedrado e tojo, a preocupação era não colocar um pé em falso, e evitar uma entorse, isto enquanto se tentava identificar o melhor caminho a seguir de fita em fita. Aos poucos a pouca vegetação foi substituída por pedras, num piso bem mais rolante, entre caminhos antigos, num sobe e desce bem ligeiro, mas que ia moendo as pernas.
A diversidade do percurso ia-se moldando ao longo do mesmo, assim que entravamos num bosque, envolto em árvores, e junto ao rio de Frades. O calor que nesta altura já se sentia, ainda que ocultado pelas árvores, e pelo fresco ambiente. Assim que exponhamos o corpo a céu aberto, sentia-se o abrasamento e o ar seco.

Eu e o Fábio. Créditos na foto
A levada que nos levava à aldeia de Tebilhão, era o único refresco que tínhamos, com pouco mais de 1 quilómetro de extensão até finalmente chegar ao segundo abastecimento, já com cerca de 21 quilómetros percorridos. Estava a sentir-me em perfeitas condições, com pernas para andar, sem cansaço, apenas com algumas dores de pés, devido ao piso acidentado ultrapassado até ali e passos mal calculados. Nada de preocupante.
Não descurei na alimentação e hidratação, demorando uns minutos ali, desde que saísse em condições. Sabia que ia ao encontro da “Besta”, e que não me ia desleixar como já o havia feito no Trail de Manhouce, por isso preferia aguardar mais um pouco e só depois arrancar.
Descida até ao leito de um rio, por entre os caminhos usados pelos aldeões para acessos aos campos, e mais uma vez, identifica-se de imediato a diversidade do meio ambiente consoante a progressão, tendo soltado um “espectáculo” mesmo junto ao rio assim que fazia a travessia numa ponte de pedra.

A enorme derrocada de pedras, denominada de “Besta” já se avistava ao longe numa das muitas encostas, faltando apenas atravessar Cabreiros onde se separava os 65KM e os 100KM, e Candal, onde aproveitava para me refrescar. O calor que já apertava algum tempo, aquecia de imediato a água dos flasks, assim que via algum ponto onde houvesse água fresca, era uma oportunidade para a troca, e o prazer de encher o boné de água e refrescar a cabeça de imediato.
Aldeias transpostas ali estava a entrada, de uma maléfica subida.
Já a tendo feito, e lido vários relatos, ainda continuo a não conseguir encontrar forma de a descrever. Tem tanto de bela como de dura. Não dá para correr, nem caminhar, apenas trepar por entre os inúmeros blocos rochosos, procurando sempre o mais regular, e mais seguro. A pequena cascata que a percorre, torna o piso escorregadio, dificultando quando temos que atravessar mesmo por entre a corrente da água. Foram cerca de 42 minutos até ao topo, para fazer quase 1 quilómetro. Uma brutalidade.
Acabei por fazer a Besta na companhia do Ricardo, não o conhecia, mas foi simplesmente impecável comigo (obrigado uma vez mais). Enquanto isso o Fábio aguardava por mim no topo, tentou fazer aquilo o mais rápido possível, e divertiu-se, diz ele.
Havia finalmente conseguido “vencer” a Besta, soube também procurar melhor o caminho para não me desgastar de imediato, como também aproveitar a água para me ir refrescando e abastecendo.

A besta. Créditos na foto.
Virei a montanha e sigo a descer rumo a Bondança, onde estava o terceiro abastecimento.
Estava completamente a céu aberto, descendo a colina até à aldeia, o terreno era duro e implacável para os pés. Estava a senti-los um pouco massacrados obrigando-me a abrandar até mesmo a caminhar. O Ricardo havia ficado um pouco para trás, e o Fábio seguiu e esperava no abastecimento. A água estava escassa, apenas uma pequena reserva numa das garrafas, que não queria desperdiçar sem saber a certeza que o abastecimento estava logo ali.
Parecia-me estar perdido num deserto, à procura de um oásis.
Faltavam cerca de 400 metros, dizia-me um senhor que ali estava a apoiar, para o abastecimento ao fresco. Pareceu uma eternidade aqueles metros, mas de facto era fresco, e abundante em reforço e simpatia. Em toda a prova, os abastecimentos foram impecáveis, completos, e com os voluntários sempre prestáveis.
Já levava 33 quilómetros, não havia manifestação das pernas, só do corpo, sentia cansado e sem forças, e uma indisposição que também não ajudava.
O abastecimento não ajudou no imediato, ainda me arrastei numa daquelas subidas curtas, mas intensas, mas que pelo menos o piso era bem mais regular.

Regular, foi o que fiz durante alguns minutos, caminhar para recuperar, ou esperar que surja alguma energia extra. Só mesmo já próximo do topo, é que volto a reaver alguma energia, e consigo retornar a correr.
Parava novamente, mas para um refresco. Um pequeno ribeiro que percorria no alto, e enchia um pequeno tanque. Foi como renovar as pernas, que iam ser castigadas logo uns metros mais à frente na descida até à aldeia de Agualva.
Mas a pior estaria para vir, uma descida feita por entre as árvores, em terra e raízes à mistura, por vezes verticalmente, onde se ia dizimando as pernas. O trilho era espectacular, mas penoso e duro, um verdadeiro torturador de pernas, que apenas se revigoraram com a chegada à cascata das Porqueiras. Mais uma oportunidade para refrescar as pernas, e encher as garrafas com água fresca.

Créditos: Organização
Estava num local que conhecia bem, já passei ali várias vezes, faz parte do PR Vereda do Pastor, e bastava descer mais um pouco, até à abandonada aldeia das Berlengas, para então depois subir pelas escadas do martírio.
Mais de 800 degraus, todos diferentes, tanto em tamanho, como em altura, de todas as formas e feitios.
Em teoria, por conhecer o que dali vinha, podia ser um factor que beneficiasse a meu favor, de forma a conseguir gerir aldeia da Lomba.
Errei em não tomar um gel antes de iniciar, como havia feito na Besta, e isso fez com que tivesse que parar a meio para recuperar. Não estava a conseguir impor o ritmo certo, sempre que terminava um lanço de escadas, sentia-me preso, e sem grande força para avançar. Acabei por tomar o gel pouco depois de ter iniciado, mas com efeitos um pouco mais tardios do que o que devia ter.

Antes de iniciar as escadas do Martírio.

Chegava à aldeia, pequena e remota no meio daquelas montanhas, onde finalmente podia ter um pouco de descanso e alimentar melhor.
Uma bifana, canja, cerveja e um café, era a ementa ali a meio da última grande subida. Foi o abastecimento onde demorei mais tempo, mas também essencial para recuperar alguma energia para o que se seguia.
A saída da aldeia, é feita pelo asfalto que nos dá continuidade do PR, é íngreme, muito curta, mas inclinada que chegue para lembrar os quilómetros que já levamos nas pernas.
O Ricardo juntava-se a nós novamente, havia ficado uns metros atrás, mas voltava a nos encontrar e acompanhar.
O terreno suavizava assim que se entra no trilho, enquanto contornávamos a montanha por um caminho cravado naquela encosta. Foi assim ate a uma pequena cascata, mais uma entre várias cascatas, ribeiros, rios que fomos apanhando ao longo do percurso, era a vantagem tendo em conta o calor que se sentia. Aproveitava para refrescar uma vez mais, e para uma troca de água nas flasks. enquanto apreciava o tormento que iria ser logo de seguida. Mando mais um gel, para prevenir alguma quebra, e faço-me a ela.

Muito ouvi falar neste trilho, que foi a novidade da edição passada, “Bradar aos Céus”, foi assim apelidada, faz as subidas que fiz até ali parecer uma brincadeira de tão íngreme e técnica que o é.
Deve ter cerca de 1 quilómetro de distância, mais coisa, menos coisa, mas com uma inclinação implacável, sendo quase vertical. O inicio ainda é facilitado com alguns degraus, semelhantes aos que já havíamos passado, mas assim que terminam, é em pura serra dura, quase toda feita com o peso do corpo sobre as pernas, não existe muitos pontos onde possamos colocar as mãos para ajudar, e quando existem estão quentes o suficiente para as escaldar. O trilho é integralmente a céu aberto onde agora o sol bem no alto, torra ainda mais quem por ali ainda anda. Paro em alguns lanços onde o terreno é mais seguro, e aproveito para vislumbrar a vista. É de loucos, tem uma vista vertiginosa, e uma barbaridade de escalada ainda por fazer. O topo parecia mesmo ali, a poucos metros, mas até lá é penoso e um tremendo tormento.
Assim que vejo as escarpas, enterradas na encosta, reconheço o caminho, do FreitaSkyrunning e sei que dali a poucos metros, está feito.

Sentei-me, assim que vejo a torre. Estou no alto do Pico do Gralheiro, falta só subir até ao radar meteorológica, mas ali já não é nada demais, é só mais uns metros.
Feito a passo, aproveitando para uns telefonemas, dizendo onde estou, e que está tudo bem, pelo menos para já.
Consoante vou subindo, volta a indisposição, teria que aguardar novamente que aquilo acalmasse para conseguir reagir novamente, é o que faz ter um estômago de princesa.
Assim que se inicia a descida para a aldeia de Castanheira, ignoro a indisposição e tento correr, vou melhorando até finalmente estar bem-disposto, mais uma má fase ultrapassada.
Já levava 48 quilómetros quando entrava no técnico PR7, é mais uma amostra que nada é pensado ao acaso, quando pensamos que tudo já terminou, surge aqueles caminhos rochosos com um abismo do nosso lado. Último abastecimento em Albergaria da Serra, e faltava a descida.

Radar Meteorológico, no Pico do Gralheiro. Foto do Google
Ainda consegui arrastar sem grande sacrifício até o Merujal, mas morri ali, faltava pouco para começar a descer, cerca de 8 quilómetros, mas não estava com pernas, e dou por isso assim que inicio.
Sabia que era dura, técnica, e mói as pernas, e os já 55 quilómetros, estava a ser um tormento, não dava para correr. As pernas pediam clemência, há muito que tinham erguido a bandeira branca a pedir tréguas. Só a passagem em água fresca aliviava, e dava para correr mais um tempo.
Recordava que assim que avistava um cemitério faltava muito pouco, mas estava a ser doloroso. Dizia ao Fábio e ao Ricardo para seguirem e não esperarem, mas insistiam em ficar comigo, e terminarmos juntos. Faltava pouco para as 12 horas de prova, e ia pelo menos tentar chegar antes disso. Ali estava o cemitério, mais uma descida e volto a correr, mas assim que entro em plano onde queria manter o mesmo andamento, já não dava. Estava derrotado por completo, pensava em tudo o que fiz durante aquele dia, e o que já tinha passado, e apesar do cansaço acumulado estava satisfeito e feliz por me ter superado. Ainda deu para vir um pouco de lágrimas aos olhos.

Cruzava as casas, e ouvia uns berros, era o meu tio, veio ao nosso encontro e acompanhava-nos até ao final. Faltavam uns 500 metros, e parece que ganho nova energia, consigo voltar a correr já junto ao pavilhão, onde está família e amigos à espera, e só depois de os cumprimentar, atravessar a meta.
Foram 11 horas e 52 minutos de prova, quase 63 quilómetros (segundo o meu relógio) de desafio e superação, implacáveis que nos colocaram durante cada metro. É uma prova certamente pensada, e planeada na integra, não existe praticamente os habituais estradões, onde as coisas possam ser mais calmas e rápidas, não. Aqui tudo é fruto de reconhecimento dos caminhos e técnicos onde vai cada um de nós sendo massacrado.
Depois temos a “Besta”, as “Escadas do Martírio” e “Bradar aos Céus”, 3 subidas que exigem resiliência, mas independentemente disso, deixa danos, que se sentem mais à frente.
Por fim volto a agradecer ao Fábio e Ricardo, que me ajudaram em muito durante todo o dia, e aquela malta toda no final que tão bem soube ver ao fim de quase 12 horas.

A meta. Créditos: Organização
Sobrevivi, e somo mais uma ultra, mas a Freita, essa ganhou como sempre.

3 comentários:

  1. Bravo! P´ró ano há mais!!!

    Vale Correr

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  2. Excelente descrição do Ultra Serra da Freita.
    Elegi esta prova com "uma das provas" de 2020. Tenho muita vontade de a conhecer e de a fazer!
    Sei que para ti já foi há algum tempo, mas estás de Parabéns!

    Pedro Viana
    https://andaviana.wordpress.com/

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    1. Obrigado. Sim já foi em Junho, mas ainda sinto arrepios quando me lembro dela, talvez por ter sido a primeira ultra mais séria que fiz.
      Vai, vais ver que não te arrependes, é dura, mas é espectacular.

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