É um
abuso. É de “Bradar aos céus” o “martírio” que passamos para fazer esta “besta”
de prova. É a melhor analogia que posso fazer para descrever o Ultra Trail Serra da Freita (UTSF). Não é
para qualquer um, e não me identifico como mais um, porque ninguém dali sai com
sentimento de vitória, mas sim de sobrevivente. Porque a vitória é sempre
daquela serra, a imponente Freita que nos vai triturando em mil pedaços, e se
lhe apetecer, só se lhe apetecer, lá nos deixa continuar o nosso caminho.
É
mágica de facto, tem tanto de bela como de dureza, desta forma não deixa
ninguém indiferente.
Foi
a prova mais insana que fiz até ao momento, se julgar pelo tempo decorrido,
como pela distância, como pelo desnível. Já nem menciono o terreno, porque
esse, bem esse … é de triturar pernas, pés, tornozelos…
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Créditos: Organização |
Eram
6 horas da manhã quando a brisa matinal ainda ocultava o forte calor que
estava por vir. Estava em silêncio o pavilhão onde nos organizávamos para um
breve briefing, como fosse uma introspecção de cada um daqueles que se iam
aventurar para os 65KM ou 100KM de pura dureza pela Serra da Freita.
Não
me manifestava, nem parecia tão perdido em pensamentos de como seria, ou como
iria fazer, aquela que ia ser a provavelmente mais louca de todas as que fiz até
ao dia.
Talvez
pela ainda presente sonolência do meu corpo, que ainda preferia estar
confortavelmente deitado num colchão e descansar, invés de ali estar a
preparar-se para se derreter em 65KM de distância em pura serra.
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O nosso briefing. Créditos na foto |
Segui
toda aquela gente até à estrada principal, local onde se dava a partida, e onde
pelo terceiro ano consecutivo marcava presença.
Não
havia pressas, nem tempos a cumprir, apenas desfrutar e objectivamente chegar ao
final sem mazelas, e com sorriso na cara, esse sim era a única coisa que queria
cumprir.
Assim
me juntava com a Márcia, Fábio e Hugo junto ao final do pelotão, tínhamos
tempo, mais que tempo, e mesmo após Moutinho ter dado o sinal de partida,
via-se muitos que partilhavam da mesma ideia, não entrando em euforias do momento.
Nada
de novo na primeira ascensão ao alto da serra, um segmento de estrada para
dividir mais os atletas, até entrar nos trilhos verdadeiramente ditos.
Single-tracks,
levadas, terra preta, e muita subida, a mais longa, e mais fácil subida de toda
a prova, que serpenteava a encosta da serra do lado de Arouca, até ao Detrelo
da Malhada, onde estava o primeiro abastecimento.
O
sol, aquela estrela quente, já começara a esquentar todos os que se aventuravam
nas encostas despidas de vegetação, ainda nada de grave, mas o dia ainda havia
começado há pouco mais de hora e meia.
Já
seguia somente na companhia do Fábio alguns quilómetros, e assim nos mantínhamos, no
alto da serra, em direcção ao próximo abastecimento.
Não
havia caminho no planalto da serra, por entre o piso empedrado e tojo, a
preocupação era não colocar um pé em falso, e evitar uma entorse, isto enquanto
se tentava identificar o melhor caminho a seguir de fita em fita. Aos poucos a
pouca vegetação foi substituída por pedras, num piso bem mais rolante, entre
caminhos antigos, num sobe e desce bem ligeiro, mas que ia moendo as pernas.
A diversidade
do percurso ia-se moldando ao longo do mesmo, assim que entravamos num bosque,
envolto em árvores, e junto ao rio de Frades. O calor que nesta altura
já se sentia, ainda que ocultado pelas árvores, e pelo fresco ambiente. Assim que
exponhamos o corpo a céu aberto, sentia-se o abrasamento e o ar seco.
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Eu e o Fábio. Créditos na foto |
A
levada que nos levava à aldeia de Tebilhão, era o único refresco que tínhamos,
com pouco mais de 1 quilómetro de extensão até finalmente chegar ao segundo
abastecimento, já com cerca de 21 quilómetros percorridos. Estava a sentir-me
em perfeitas condições, com pernas para andar, sem cansaço, apenas com algumas
dores de pés, devido ao piso acidentado ultrapassado até ali e passos mal
calculados. Nada de preocupante.
Não descurei na alimentação e hidratação, demorando uns minutos ali, desde que saísse em condições. Sabia que ia ao encontro da “Besta”, e que não me ia
desleixar como já o havia feito no Trail de Manhouce, por isso preferia
aguardar mais um pouco e só depois arrancar.
Descida
até ao leito de um rio, por entre os caminhos usados pelos aldeões para acessos
aos campos, e mais uma vez, identifica-se de imediato a diversidade do meio
ambiente consoante a progressão, tendo soltado um “espectáculo” mesmo junto ao
rio assim que fazia a travessia numa ponte de pedra.
A enorme derrocada de pedras, denominada de “Besta” já se avistava ao longe numa das muitas encostas, faltando apenas atravessar Cabreiros onde se separava os 65KM e os 100KM, e Candal, onde aproveitava para me refrescar. O calor que já apertava algum tempo, aquecia de imediato a água dos flasks, assim que via algum ponto onde houvesse água fresca, era uma oportunidade para a troca, e o prazer de encher o boné de água e refrescar a cabeça de imediato.
Aldeias
transpostas ali estava a entrada, de uma maléfica subida.
Já a
tendo feito, e lido vários relatos, ainda continuo a não conseguir encontrar
forma de a descrever. Tem tanto de bela como de dura. Não dá para correr, nem
caminhar, apenas trepar por entre os inúmeros blocos rochosos, procurando
sempre o mais regular, e mais seguro. A pequena cascata que a percorre, torna o
piso escorregadio, dificultando quando temos que atravessar mesmo por entre
a corrente da água. Foram cerca de 42 minutos até ao topo, para fazer quase 1
quilómetro. Uma brutalidade.
Acabei
por fazer a Besta na companhia do Ricardo, não o conhecia, mas foi simplesmente
impecável comigo (obrigado uma vez mais). Enquanto isso o Fábio aguardava por
mim no topo, tentou fazer aquilo o mais rápido possível, e divertiu-se, diz
ele.
Havia
finalmente conseguido “vencer” a Besta, soube também procurar melhor o caminho
para não me desgastar de imediato, como também aproveitar a água para me ir
refrescando e abastecendo.
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A besta. Créditos na foto. |
Estava
completamente a céu aberto, descendo a colina até à aldeia, o terreno era duro
e implacável para os pés. Estava a senti-los um pouco massacrados obrigando-me
a abrandar até mesmo a caminhar. O Ricardo havia ficado um pouco para trás, e o
Fábio seguiu e esperava no abastecimento. A água estava escassa, apenas uma
pequena reserva numa das garrafas, que não queria desperdiçar sem saber a
certeza que o abastecimento estava logo ali.
Parecia-me
estar perdido num deserto, à procura de um oásis.
Faltavam
cerca de 400 metros, dizia-me um senhor que ali estava a apoiar, para o
abastecimento ao fresco. Pareceu uma eternidade aqueles metros, mas de facto
era fresco, e abundante em reforço e simpatia. Em toda a prova, os
abastecimentos foram impecáveis, completos, e com os voluntários sempre
prestáveis.
Já
levava 33 quilómetros, não havia manifestação das pernas, só do
corpo, sentia cansado e sem forças, e uma indisposição que também não ajudava.
O
abastecimento não ajudou no imediato, ainda me arrastei numa daquelas subidas
curtas, mas intensas, mas que pelo menos o piso era bem mais regular.
Regular,
foi o que fiz durante alguns minutos, caminhar para recuperar, ou esperar que
surja alguma energia extra. Só mesmo já próximo do topo, é que volto a reaver
alguma energia, e consigo retornar a correr.
Parava novamente, mas para um refresco. Um pequeno
ribeiro que percorria no alto, e enchia um pequeno tanque. Foi como renovar as
pernas, que iam ser castigadas logo uns metros mais à frente na descida até à
aldeia de Agualva.
Mas
a pior estaria para vir, uma descida feita por entre as árvores, em terra e raízes
à mistura, por vezes verticalmente, onde se ia dizimando as pernas. O trilho
era espectacular, mas penoso e duro, um verdadeiro torturador de pernas, que
apenas se revigoraram com a chegada à cascata das Porqueiras. Mais uma
oportunidade para refrescar as pernas, e encher as garrafas com água fresca.
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Créditos: Organização |
Mais
de 800 degraus, todos diferentes, tanto em tamanho, como em altura, de todas as
formas e feitios.
Em
teoria, por conhecer o que dali vinha, podia ser um factor que beneficiasse a
meu favor, de forma a conseguir gerir aldeia da Lomba.
Errei
em não tomar um gel antes de iniciar, como havia feito na Besta, e isso fez com
que tivesse que parar a meio para recuperar. Não estava a conseguir impor o
ritmo certo, sempre que terminava um lanço de escadas, sentia-me preso, e sem
grande força para avançar. Acabei por tomar o gel pouco depois de ter iniciado,
mas com efeitos um pouco mais tardios do que o que devia ter.
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Antes de iniciar as escadas do Martírio. |
Chegava
à aldeia, pequena e remota no meio daquelas montanhas, onde finalmente podia
ter um pouco de descanso e alimentar melhor.
Uma
bifana, canja, cerveja e um café, era a ementa ali a meio da última grande
subida. Foi o abastecimento onde demorei mais tempo, mas também essencial para
recuperar alguma energia para o que se seguia.
A
saída da aldeia, é feita pelo asfalto que nos dá continuidade do PR, é íngreme,
muito curta, mas inclinada que chegue para lembrar os quilómetros que já
levamos nas pernas.
O
Ricardo juntava-se a nós novamente, havia ficado uns metros atrás, mas voltava a nos encontrar e acompanhar.
O terreno suavizava
assim que se entra no trilho, enquanto contornávamos a montanha por um caminho
cravado naquela encosta. Foi assim ate a uma pequena cascata, mais uma entre
várias cascatas, ribeiros, rios que fomos apanhando ao longo do percurso, era a
vantagem tendo em conta o calor que se sentia. Aproveitava para refrescar uma vez mais, e para uma troca de água nas flasks. enquanto apreciava o tormento que iria ser logo de seguida.
Mando mais um gel, para prevenir alguma quebra, e faço-me a ela.
Muito
ouvi falar neste trilho, que foi a novidade da edição passada, “Bradar aos
Céus”, foi assim apelidada, faz as subidas que fiz até ali parecer uma
brincadeira de tão íngreme e técnica que o é.
Deve
ter cerca de 1 quilómetro de distância, mais coisa, menos coisa, mas com uma inclinação
implacável, sendo quase vertical. O inicio ainda é facilitado com alguns
degraus, semelhantes aos que já havíamos passado, mas assim que terminam, é em
pura serra dura, quase toda feita com o peso do corpo sobre as pernas, não existe muitos
pontos onde possamos colocar as mãos para ajudar, e quando existem estão
quentes o suficiente para as escaldar. O trilho é integralmente a céu
aberto onde agora o sol bem no alto, torra ainda mais quem por ali ainda anda.
Paro em alguns lanços onde o terreno é mais seguro, e aproveito para vislumbrar
a vista. É de loucos, tem uma vista vertiginosa, e uma barbaridade de escalada
ainda por fazer. O topo parecia mesmo ali, a poucos metros, mas até lá é penoso
e um tremendo tormento.
Assim
que vejo as escarpas, enterradas na encosta, reconheço o caminho, do FreitaSkyrunning e sei que dali a poucos metros, está feito.
Sentei-me,
assim que vejo a torre. Estou no alto do Pico do Gralheiro, falta só subir até
ao radar meteorológica, mas ali já não é nada demais, é só mais uns metros.
Feito
a passo, aproveitando para uns telefonemas, dizendo onde estou, e que está tudo
bem, pelo menos para já.
Consoante
vou subindo, volta a indisposição, teria que aguardar novamente que aquilo
acalmasse para conseguir reagir novamente, é o que faz ter um estômago de
princesa.
Assim
que se inicia a descida para a aldeia de Castanheira, ignoro a indisposição e tento
correr, vou melhorando até finalmente estar bem-disposto, mais uma má fase
ultrapassada.
Já
levava 48 quilómetros quando entrava no técnico PR7, é mais uma amostra que
nada é pensado ao acaso, quando pensamos que tudo já terminou, surge aqueles
caminhos rochosos com um abismo do nosso lado. Último abastecimento em
Albergaria da Serra, e faltava a descida.
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Radar Meteorológico, no Pico do Gralheiro. Foto do Google |
Sabia
que era dura, técnica, e mói as pernas, e os já 55 quilómetros, estava a ser um
tormento, não dava para correr. As pernas pediam clemência, há muito que tinham
erguido a bandeira branca a pedir tréguas. Só a passagem em água fresca
aliviava, e dava para correr mais um tempo.
Recordava
que assim que avistava um cemitério faltava muito pouco, mas estava a ser
doloroso. Dizia ao Fábio e ao Ricardo para seguirem e não esperarem, mas
insistiam em ficar comigo, e terminarmos juntos. Faltava pouco para as 12 horas
de prova, e ia pelo menos tentar chegar antes disso. Ali estava o cemitério,
mais uma descida e volto a correr, mas assim que entro em plano onde queria manter
o mesmo andamento, já não dava. Estava derrotado por completo, pensava em tudo
o que fiz durante aquele dia, e o que já tinha passado, e apesar do cansaço
acumulado estava satisfeito e feliz por me ter superado. Ainda deu para vir um
pouco de lágrimas aos olhos.
Cruzava
as casas, e ouvia uns berros, era o meu tio, veio ao nosso encontro e
acompanhava-nos até ao final. Faltavam uns 500 metros, e parece que ganho nova
energia, consigo voltar a correr já junto ao pavilhão, onde está família e
amigos à espera, e só depois de os cumprimentar, atravessar a meta.
Foram
11 horas e 52 minutos de prova, quase 63 quilómetros (segundo o meu relógio) de
desafio e superação, implacáveis que nos colocaram durante cada metro. É uma
prova certamente pensada, e planeada na integra, não existe praticamente os
habituais estradões, onde as coisas possam ser mais calmas e rápidas, não. Aqui
tudo é fruto de reconhecimento dos caminhos e técnicos onde vai cada um de nós
sendo massacrado.
Depois
temos a “Besta”, as “Escadas do Martírio” e “Bradar aos Céus”, 3 subidas que
exigem resiliência, mas independentemente disso, deixa danos, que se sentem mais à frente.
Por
fim volto a agradecer ao Fábio e Ricardo, que me ajudaram em muito durante todo
o dia, e aquela malta toda no final que tão bem soube ver ao fim de quase 12
horas.
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A meta. Créditos: Organização |
Bravo! P´ró ano há mais!!!
ResponderEliminarVale Correr
Excelente descrição do Ultra Serra da Freita.
ResponderEliminarElegi esta prova com "uma das provas" de 2020. Tenho muita vontade de a conhecer e de a fazer!
Sei que para ti já foi há algum tempo, mas estás de Parabéns!
Pedro Viana
https://andaviana.wordpress.com/
Obrigado. Sim já foi em Junho, mas ainda sinto arrepios quando me lembro dela, talvez por ter sido a primeira ultra mais séria que fiz.
EliminarVai, vais ver que não te arrependes, é dura, mas é espectacular.