terça-feira, 10 de março de 2020

Ultra Sicó 57KM - Um carrossel de emoções


- “Estou! Estás onde?”
- “Estou em Tapeus, no abastecimento à tua espera e tu?”
- “Ainda estou com 22 KM, a chegar ao abastecimento do quilómetro 25, e se calhar fico por aqui, não estou em condições, vai ser para sofrer o resto da prova.”




Sicó, a prova que me chamou atenção, e me deu a conhecer o trail, ainda era eu um rebento no mundo da corrida. Em 2017, foi a primeira vez que percorri aqueles trilhos, e fiquei fã, de forma a ter repetido em 2018.
Dois anos depois, regresso, mas desta vez para uma distância mais demolidora, mas que me fez sentir como algum tempo não sentia. Aquele nervoso miudinho, aquela noite mal dormida e inquieta a antever o que ia fazer, ou como o iria fazer. Tudo isto devido ao facto de me ter preparado para tal, foram poucos meses, mas com foco somente neste dia, queria ter treinado mais, mas dentro daquilo que me foi possível, foi o que consegui, e sabia que tinha hipóteses de a concluir, e só isso já me fez ambicionar mais que o que até ali havia feito.


Créditos na foto

Foi uma noite inquieta que me fez acordar sobressaltado logo pela fresquinha, manhã gélida, e com vontade de querer estar um pouco mais no quente da cama, mas tinha que ser. Já foram várias as vezes que fui correr com menos horas de sono, não ia ser agora que isto me ia travar.
Chegado a Condeixa e com alguma pressa, fui encontrar o autocarro que nos levava directamente para Santiago da Guarda, local de início da distância dos 57 KM, e cruzamento de percurso para quem vai na distância maior (111 KM).
Foi o recordar de um ponto que mais critiquei no Vouga Trail, com o tempo de espera que tivemos que suportar até à hora de partida, com cerca de 1.30h em pé. Valendo somente o facto de podermos estar abrigados da chuva e do frio, num complexo monumental local.

A ansiedade foi acalmando, e a preguiça apoderando, estava com algumas reticências se o iria conseguir, já que antes tinha tantas certezas que era possível, foi assim que me arrastei para fora do edifício, e comecei a tentar ambientar-me ao clima fresco e chuva que se previa pelo menos para a fase inicial da prova. Eram 09.30h, e o gelo foi rompido, estávamos finalmente no terreno, rumo ao que para mim em grande parte era desconhecido, tirando algumas secções por conhecer das edições anteriores.
Foram algumas centenas de metros até entrar em trilho finalmente, que não tardou em interromper a velocidade de inúmeros que ali se aventuraram a apressar na fase inicial.
A pedra solta, e riachos de água devido à chuva que já havia terminado, foi o suficiente para atrasar uns quantos, e deu para pelo menos dispersar-me da grande maioria.
Tentei acompanhar o Fábio naquela fase inicial, mas a confusão era tanta que acabei por o perder logo ali, e não conseguindo mais alcançar, pensei para comigo mesmo, se é para tentar fazer isto mais sério e já que estás capaz de o fazer, sozinho terá outro sabor.


Pouco antes de partir. A habituar ao frio. Foto de ‎"Christine François Wilman"

A comunhão do percurso com os 111 KM foi de alguma forma engraçada, ver toda aquela gente que enfrentava já umas longas horas e muitos quilómetros nas pernas, sem eu nunca deixar de dar uma palavra a cada um que passava.
Estranhava os já mais que conhecidos estradões do Sicó ainda não terem aparecido, e após 5/6 quilómetros lá surgiram, ainda que um pouco tímidos, devido à grande afluência de água.
O caminho tornava-se perigoso, fazendo os caminhos um pouco mais artístico, não fosse a grande possibilidade de dar várias piruetas seguidas em tão poucos metros. A lama já mais que pisada fazia com que deslizasse a cada passada, tendo perdido a conta de vezes que não me passou pela cabeça que seria ali que ia dar uma grande queda. Felizmente o susto maior que tive, foi numa pequena descida em que ia caindo para trás, e provavelmente desceria o resto sentado. Felizmente, não passou de um susto.

O tempo já havia melhorado bastante, não se sentia tanto frio, a chuva desapareceu, foi tréguas do S. Pedro para connosco, e deu para desfrutar mais do percurso. A primeira grande subida apareceu já aos 8/9 KM, até atingir o ponto mais alto da prova. Deu para suar, não que fosse muito agreste, mas deu para puxar bem pelas pernas, dado a grande amplitude de movimentos trepando algumas rochas. A descida apareceu algo que tímida, sem grande inclinação, mas um pouco abundante em lama, e não seria de esperar outra coisa. Procurei sempre as correr pela lateral do trilho, onde existia vegetação e não era tão perigoso, havendo algum atrito e menor risco de cair.


A chegar ao topo do Monte de Sicó. Créditos na foto

Foi descer, e bastante, num trilho em que nem era preciso procurar as marcações para o fazer na totalidade. Sempre com pedra à mistura, mas com mais segurança do que havia sido feito até ali, descendo a colina do Monte do Sicó, e chegar a “Pousadas Vedras”, para o primeiro abastecimento. Foi o torço mais longo, entre abastecimentos, e com já 16 KM, fazendo ali uma rápida análise, sentia-me perfeitamente bem, não tinha dores, nada de cansaço, sentia perfeitas condições para correr, estava maravilhado. Afinal o treino que fiz estava a dar resultados.
Procurei não perder muito tempo ali, apenas alguns minutos, não queria desleixar tanto na alimentação como hidratação, e fiz-me ao caminho.
A saída fez-se estrada fora em busca do próximo trilho, com ligeiras subidas, em que tentei voltar a atingir os ritmos que vim até ali.

Foram uns poucos metros para abrandar e caminhar. – “Acabei de comer, parei e estou a arrancar, o corpo manifesta-se e não quer andar. Aguardemos um pouco” – Pensei naquele momento, enquanto tentava recuperar forças para voltar a correr.
Não demorou muito, mas foi algo forçado, e lá consigo voltar a correr, ainda que com folego algo descontrolado, e um cansaço a querer manifestar-se. - “Noite mal dormida? Será que vai complicar-me as coisas?” – Uma série de questões, começavam a surgir na cabeça, e ao mesmo tempo desanimava. Afinal tinha treinado para aquilo, queria fazer uma prova tranquila, com ritmo mais forte, e sem grande cansaço acumulado.

Valeu mesmo os trilhos, os single-tracks que iam surgindo e que tanto adoro daquela zona, num constante mudança atípica de cenários. A entrada no trilho de Poios foi fantástica, coberto pela vegetação, e num caminho a rasgar o piso até ao fundo de um vale.
Lembrava daquele local já visto por outras crónicas que fui lendo de quem ali já passou, e estava muito curioso com aquilo.
Infelizmente não consegui usufruir como queria, foi como uma espécie de cansaço me tivesse apoderado. Senti-me fraco e com sérios problemas para avançar, já sendo um esforço dar o próximo passo. Pego numa barra e empurro goela abaixo em conjunto com água para evitar problemas maiores. Estava cariz baixo, até há pouco tempo, estava a sentir-me em perfeitas condições, a num ápice as coisas mudaram radicalmente e com tão poucos quilómetros. Fui de ideal a besta num instante, morri completamente.


O fantástico Vale dos Poios, onde não consegui desfrutar.
Foto retirada do site www.greentrekker.pt

Era um zigue zague encosta acima num monte rochoso que se tornou um tormento, começo a sentir-me cada vez mais fraco, e com poucas condições para fazer a prova em completo. Foi por volta dos 21 / 22 quilómetros que tomo a decisão – “Aos 25 KM, se não me sentir bem, por ali fico. Não quero sofrer até ao final.”. Já num trilho que virava o monte, pego no telemóvel, e ligo para a minha namorada que estaria num dos abastecimentos há minha espera, provavelmente em Tapeus, quilómetro 33.

- “Estou! Estás onde?”
- “Estou em Tapeus, no abastecimento à tua espera e tu?”
- “Ainda estou com 22 KM, a chegar ao abastecimento do quilómetro 25, e se calhar fico por aqui, não estou em condições, vai ser para sofrer o resto da prova.”
- “Mas estás bem? Não desistas, tu consegues”
- “Não sinto totalmente bem, estou fraco e sem grande força para continuar, e não quero ir em sofrimento até ao final. Vou ver como me sinto no abastecimento.”
- “Vai. Tu consegues, não desistas. És capaz.”

Estava a arrastar-me, e estava a ser ultrapassado constantemente. O sol espreitava por diversas vezes, e abafava o clima naquela encosta, e faltavam uns míseros 2 KM para o abastecimento, até conseguir colocar um género de trote.
A minha cara, naquele momento, devia ser algo semelhante a de alguém que estivesse a desfalecer, tal era o desalento e o esforço que fazia para dar um próximo passo.
Estava no abastecimento, que em circunstâncias normais, já teria saído dali para foram, mas foi onde procurei repousar e hidratar bem, isto deveria ser uma desidratação, e com a reposição de líquidos e comida, isto vai lá.
Enquanto ali estou, vou vendo muitos chegar e partir rapidamente, inclusive a Márcia, que me veio perguntar se estava bem, tendo explicado a situação, e afirmando o que já pensava, que pelos sintomas só poderia ser desidratação.

Após verificar que estava bem, arrancou, visto estar bem posicionada, e iria tentar o melhor que conseguisse dali para a frente.
Ainda aguardei mais uns minutos, e após bastante líquidos, e comida, decido retomar, caso me sentisse mal, dou por encerrado e volto para trás. Pego numa água das pedras de limão, que já me ajudou noutras provas, e bebo, enquanto recordo aquela conversa telefónica, que me moralizou e me deu confiança para não desistir, e chegar à meta. Foram poucas as palavras, mas foram as suficientes e as mais assertivas naquele momento
Aos poucos começo a sentir frio, e opto por vestir o impermeável que trazia na mochila. Não queria prejudicar o desgaste do corpo, com o frio do exterior.
Estava decidido, sigo caminho, e vamos ver o que acontece…

Saio de Poios, e mal coloco o pé fora do abastecimento, sinto uma corrente de ar fresco que me deixa gelado. Tento sair dali rapidamente, e ainda em modo de caminhante prossigo até começar a sentir o suficientemente bem para voltar a correr. Batia o dente de tanto frio que sentia, foi ali que vi o quão fragilizado estava, e uns 100 metros depois, tento um trote, e a coisa funcionou.
O corpo respondeu positivamente, e sem queixas, e com o psicológico a dizer para não exagerar, deixar as coisas andar, e daqui a pouco vemos o que se sucede.
Os quilómetros foram passado, e não senti quebras, bem pelo contrário, melhorava com o passar do tempo e isso ajudou a equilibrar-me mentalmente novamente.
Ia voltando a recuperar lugares atrás de lugares, ainda sem exageros, com ritmos ainda que contidos.


Daqueles abastecimentos fartos em tudo. Foto de ‎"Christine François Wilman"


Olho para o relógio e vejo que estou a chegar aos 33 KM, onde estava o meu apoio e local onde pretendia parar para comer algo mais consistente. Aperto mais o ritmo, e tudo indicava que sim, que o mau momento ficara para trás, e estava rejuvenescido. Foi como se tivesse caído a um poço sem saída, e alguém me tivesse arrancado dali.
Mesmo a chegar ao abastecimento, apanho a Márcia de novo, e apanho a minha namorada e os meus pais. Agradeço as palavras, e indico que já estou bem.
Entro de rompante no abastecimento e bebo água e mais água. Uma canja que me confortou o estômago, e me soube pela vida, enquanto falo com a família a explicar o que se tinha sucedido. Agora estava diferente, estava energético, e queria arrancar o mais rápido possível. Despeço deles, e combinamos ver em Casmilo, e arranco com a Márcia.

Prometia ser a etapa mais dura de todo o percurso, ganhando 600 D+ em mais ou menos 10 KM, numa longa subida assim que saímos do abastecimento.
A subida era realmente longa, mas acessível, não sendo muito inclinada, nem técnica, sendo os últimos 300 metros talvez o que complicasse mais todo aquele segmento. Acabo por deixar a Márcia para trás, e sigo sozinho.
Assim que consegui atingir o topo, não perdi muito tempo, e consegui rapidamente impor ritmo de corrida, e seguir os longos estradões que ligam as ventoinhas eólicas. O extenso estradão foi uma manobra de nos desconcentrar, e após uma ligeira descida, obriga-nos a finalizar numa longa subida. Viramos o monte, e voltávamos a descer, estava finalmente a fazer o que queria desde o tiro de partida, mas que infelizmente havia sido interrompido entre os 16 e 25 KM.
Isso já estava para trás das costas, seria eu contra o tempo agora, e tentar recuperar o quer que fosse possível.

Descer em direcção às Buracas de Casmilo. Foto de ‎"Christine François Wilman"

A descer estava a conseguir impor ritmos altos sem abusos, tanto é que um dos comentários de um grupo que passei, já com cerca de 40 quilómetros nas pernas, era que estava a participar na prova dos 25, tal era a velocidade e a frescura com que estava.
Eu sabia que tinha treinado para aquilo, eu sabia que conseguia, só demorou um pouco a coisa realmente aparecer.
A descer o estradão, vou avistando as buracas, as famosas buracas, e terreno conhecido para mim, só que desta vez em sentido contrário.
O trilho das buracas, é dos meus preferidos. Adoro aquele single-track que vai tricotando as árvores que nos escondem do sol, É um zigue-zague constante, mas divertido, tendo apenas que estar atento às imensas raízes e pedras para não dar uma queda aparatosa. Para sair dali, só em subida, com uso dos 4 membros em algumas circunstâncias. E só depois então num caminho todo em pedra, até chegar a Casmilo.


A chegar a Casmilo. Créditos na foto

Era o penúltimo abastecimento, e continuava cheio de energia. Reencontrava a família, e ficaram admirados de já ali estar, sendo a fase mais complicada de todo o percurso.
Eu estava realmente cheio de energia, e mesmo assim não deixei de me precaver no abastecimento. Despedi-me deles, e agora só nos voltaríamos a ver no final, em Condeixa. Só algo mal antecipado é que me impediria de terminar a prova.
Tenho um estômago que às vezes parece uma princesa, e quando saí do abastecimento vi que não poderia desatar a correr, estava com a barriga pesada, e se o fizesse iria correr mal.
Ainda andei uns valentes metros em modo de caminheiro, estradão fora, até começar a descer, só então puder voltar a correr, e fui-me sentindo melhor. Chegava a Serra de Janeanes, e não segui pelo habitual caminho que fizera nos 25 KM e nos levava até ao Poço por um longo estradão que detestava.
Desta vez, atravessamos a aldeia, e sigo por um novo caminho, pelo menos para mim, que entre campos, a coisa se tornou mais agradável, tendo apenas sido interrompido, por mais uma “escalada”, curta mais trituradora. Saí dali rapidamente, e volto a meter-me a caminho até ao último abastecimento no Poço.

Faltavam uns 5 quilómetros até ao final, e não demorei muito, enquanto o pessoal da organização pediam para irmos agora com atenção, por ser um trilho perigoso.
De facto é, escorregadio, e acidentado, mas lindo q.b., sendo o meu preferido de toda a prova.
Vou relembrando o caminho ao mesmo tempo que o transponho, num sobe e desce ligeiro, parecendo estar num carrossel. Até então ali chegar, a uma entrada “desenhada” no meio da vegetação, e nos levando para um mundo diferente.
Após imensos quilómetros expostos ao céu aberto, foi como se entrássemos num bosque selvagem, num trilho paralelo ao leito do rio seco. Mas nem por isso o piso era menos escorregadio, e cada passo era um perigo para toda a estrutura óssea de quem preze por ela.
Não temos muitas oportunidades para correr, mas também sem tempo para descanso. Nos momentos que não corremos, temos que estar atentos onde colocamos os pés, seja a subir, seja a descer, quando corremos, qual é o melhor caminho a seguir, sem que se coloque o pé em falso, ou enfiemos a cabeça em algum tronco de árvore que se metem pelo caminho. Adoro aquele trilho, mas desta vez queria sair dali o mais rápido possível, sem quedas.
A subida por uma escadaria improvisada colina acima significava o final da tortura que aquele segmento nos dá.
Assim que vejo que chego ao cimo, e entro no estradão, estava feito. Ainda que faltasse cerca de 2 KM até ao final, dificilmente não terminava a prova.

Mais uma das famosas buracas. Foto de "‎Christine François Wilman"

Cerro os dentes, endireito-me com o caminho, e desato a correr. Faltava muito pouco para finalizar. Passava pela ruínas de Conimbriga, Condeixa-a-Velha, e chegava a Condeixa.
O meu pai aguardava-me junto ao início da última subida que nos levava até ao centro, e acompanhou-me naqueles últimos metros até à meta. Agradeço aqueles últimos metros, e vou em direcção à meta, passo pela minha mãe e namorada, e também dou um “high five”.
Cerro o punho, e festejo. Citando as palavras do speaker Hugo Água “Olhem para a felicidade na cara deste atleta”.

Foram 57 KM, feitos com as pernas e com o coração. Como disse de início, foi provavelmente a prova que mais me dediquei no que treinos diz respeito, sabia que era capaz de fazer a distância, e que poderia fazer uma boa prestação. Infelizmente o meu corpo numa zona prematura deitou-me abaixo, fisicamente e psicologicamente. Valeu o apoio de fora da minha família, e as palavras da quem acreditava em mim, que era capaz de concluir. Só aí consegui traduzir o meu treino na prova. Daí dois dias depois, estar sem dores de pernas, nem desgaste físico.

Sicó, foi o trail que me chamou para os trilhos, e onde adoro correr por todo o envolvente que esta prova nos dá.
Grande apoio durante todo o percurso, abastecimentos fartos, marcações excelentes, trilhos fantásticos, enfim uma panóplia de argumentos que caracterizam este trail como um dos mais ricos a nível nacional, não fosse a quantidade de atletas que todos os anos alinham no tiro de partida, seja na distância que for.
Tem os seus defeitos? Tem. Mas tem muita qualidade.

2 comentários:

  1. Parabéns João!
    Sicó é uma prova traiçoeira! Quem só olha para o rácio de d+/ não percebe a dificuldade que é essa prova!
    Sicó está no meu horizonte!
    Boa recuperação e bons treinos!

    Um abraço
    https://andaviana.wordpress.com/

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    Respostas
    1. Obrigado.
      Sim, o ser rolante não significa ser mais fácil, porque proporciona a ritmos mais elevados, o desgaste está lá na mesma.

      Recomendo a ida.

      Abraço

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