quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

24 Horas Portugal

Nem sempre as coisas correm pelo melhor, e a última prova já realizada há cerca de 2 meses, foi grande prova disso. Forçado a parar com a corrida, tive cerca de 1 mês em que a única função não sedentária que fazia era umas caminhadas, e mesmo estas eram poucas.
O desânimo e a falta de paciência por estar ligeiramente incapacitado e não poder fazer nada era grande, e só queria fechar aquele ciclo e voltar a fazer o que gostava.

Felizmente a recuperação correu como era de esperar, faltando apenas a fisioterapia, mas essa já não me impedia de voltar a correr. Aos poucos fui voltando a treinar e tinha uns quilos a perder. Recomeço em inicio de Agosto, com imenso calor, talvez a melhor maneira para queimar a gordura. Contudo, o meu maior problema era na respiração, já não tinha a caixa que antes tanto treinei, o que me dificultou um pouco voltar à normalidade. Longe de mim estava o pensamento de me inscrever em provas, muito menos no 24 Horas Portugal que estava tão próximo. A vontade de voltar aquele dia frenético era grande, mas conscientemente fui tendo juízo e fui adiando a inscrição.
Obviamente a minha grande vontade iria acabar por se impor, e sucedeu-se a inscrição e a forte vontade de voltar a treinar para estar minimamente preparado para uma valente porrada psicológica e martelada nas pernas.


Já sabia o que iria enfrentar e estava mentalmente preparado para uma grande dose em grande estilo.
Após a minha primeira participação nesta prova em 2016, sabia que ali teria de voltar. Só que agora queria algo maior e diferente. Em primeiro lugar estabeleci o meu objectivo para 50 voltas, conseguindo assim atingir os 3 dígitos (100KM), em segundo lugar não ir a casa para dormir, ou seja, ter uma presença assídua durante as verdadeiras 24 horas. Isto era tudo muito bonito se não tivesse tido a maldita queda que me obrigou a parar. Em consequência disso, estes prognósticos foram logo colocados obrigatoriamente de lado, e iria fazer conforme conseguia, sem nunca me expor a grandes esforços que prejudicassem futuramente.

Fim das queixas e lamechas (desculpas) e vamos ao que realmente importa, a prova, ou melhor a introdução à prova.

A prova em si não tem muito para se dizer, pois não existe grandes paisagens que fiquemos boquiaberto, não existe trilhos, single tracks, subidas ou descidas de grande declive ou técnicos para que sejamos obrigados a mostrar os nossos dotes de agilidade. Apenas um circuito com pouco mais de 2 KM, em que o piso é grande parte feito de pedras cobertas por cimento, um pouco de empedrado regular, e umas 3 pontes em madeira. A única destreza é aguentar as 24 horas tornando-se um verdadeiro desafio tanto competitivo, como pessoal.
Como disse não existe grandes palavras que a descrevam, mas tem tanto para ser vivido.

Como tem sido habitual uma das particularidades que gosto dali estar, é pelo convívio que existe e a grande entreajuda por e para todos. O facto de haver um local para podermos montar a tenda torna tudo isto bem mais evidente aquando a passagem naquela zona com um forte apoio. Para além disto há a grande tenda, local reservado para descanso e comer, sendo um “refúgio” para muitos atletas, quando querem pausar um pouco na duríssima e duradoura etapa, ou mesmo conviver.

A base de toda aquela logística já está bem desenhada, e o briefing mostrou isso mesmo, que à excepção de alguns pequenos pormenores que se modificaram devido algumas falhas em anos anteriores, tudo se manteve. Desta forma só se pode dar reconhecimento e valor à organização por ouvir e responder desta forma aos participantes. O único parênteses que posso fazer, é o valor da inscrição e o que têm vindo a retirar na oferta aos participantes. Sendo que a nível pessoal a grande falha, foi mesmo as 3 refeições que cada atleta tinha direito, pelo menos na edição anterior.

Está a tenda armada, ou as tendas?
E agora sim, a prova!

Finalmente, e ao fim de 2 meses, tenho novamente um novo dorsal para dar uso.
A partida estava marcada para as 12h de Sábado, terminando às 12h de Domingo, e não falhou. À hora certa, ou melhor antes uns minutos um pequeno momento à UTMB, com a famosa música de Vangelis para dar o tiro de partida. Os dados estavam lançados e já estava dado os primeiros passos de corrida para a primeira volta ao circuito.
O primeiro objectivo foi simples, antes da primeira paragem para descanso fazer 21 KM, ou seja, fazer uma meia maratona para iniciar a prova de resistência. Consegui meter a máquina a funcionar, e ir dando atenção ao corpo para o caso de algum sinal menos bom. Foi um bom teste de forma a ver como estava. A corrida seria sempre bem mais lenta, chegando a um ponto que se intercalava com caminhada. Esta seria a gestão para conseguir obter o melhor de mim. As paragens serviam para repousar e comer alguma refeição mais “pesada” que o abastecimento.

Nas fases seguintes a progressão modifica completamente, com número de voltas bem mais curto, mas que consiga manter um ritmo constante para as restantes horas.
O apoio externo é o que nos vai mantendo com força e animo, e felizmente este ano houve um bom exemplo disso. Dos momentos mais altos, é quando a inclusão de atletas na prova de 3 horas a solo ou equipa, estes trazem um ritmo diferente, que nos faz roer de inveja dado o desgaste que já levamos.

Já ao final da tarde, opto por um descanso mais longo, comer algo e um banho para refrescar um pouco. Sendo vizinho do local da prova, o meu local para tudo isto, é em casa obviamente.
O banho pôs-me como novo, e a refeição ajudou-me bastante a repor energias.
De regresso à pista, a festa é de outro nível, bastante gente a apoiar e a dar aquela energia extra a todos. As 3 horas em equipas funcionando por turnos, tem uma maior aderência à noite que durante o dia. Neste momento para além da “confusão” devido ao aumento de atletas, a festa do lado de fora também era maior, a passagem na meta para concluir mais uma volta era sempre um momento de festejo. Após andar quase todo o dia acompanhado, à noite andei um pouco mais só, desde que regresso, até ter conhecido a Ana que me vai acompanhando em algumas voltas.

Terminando as 3 horas deste último turno de Sábado, aos poucos os festejos vão acalmando e quem por lá anda, fica mais solitário. Para além do desgaste físico que vamos acumulando ao longo das horas, o desgaste psicológico é tão ou mais importante para continuar em frente.
Já são poucos os que continuam a correr, ficando apenas alguns resistentes. Ainda desapareci, por cerca de 2 horas para tentar dormir um pouco, mas ao final de algum tempo por não estar a conseguir dormir em condições e já de madrugada, volto a calçar as sapatilhas e prossigo. Nesta altura são poucos os que correm, a gestão era caminhar a um ritmo calmo para aguentar para o dia seguinte.

A noite acaba por ser boa, mas ao mesmo tempo estranha. Com ela o frio chega, após um dia de calor ameno. Por acaso estava ansioso por chegar à noite, mas poucas horas depois já estava a pensar no amanhecer e como aquela escuridão já se tornava aborrecida. As camisolas foram uma grande ajuda, e só assim se conseguia evitar o bater do dente. Durante a noite acabei por andar por vezes em algumas zonas não tão bem iluminadas a sós comigo mesmo. Estes foram dos momentos mais bons e estranhos que alguma vez senti a correr. Com todo aquele acumular, vários são os pensamentos que passam pela cabeça, que por vezes dava vontade de rir, e ao mesmo tempo para colocar aquela lágrima no canto do olho.


Como indiquei no inicio, os objectivos passaram de algo em concreto, para o desconhecido. O objectivo que tinha de chegar aos 3 dígitos estava adiada para outra altura e a distância final seria uma incógnita até ao fim, mas nada mais me surpreendeu, quando a meio da noite, comecei a fazer contas. Ainda perto da meia noite, já rondava os 70 quilómetros, cerca de 34 voltas ao percurso. Quando comecei a fazer contas ao tempo restante, comecei a perceber que o objectivo colocado de lado, afinal poderia estar de pé. Não as 50 voltas, mas pelo menos chegar aos 100 KM, visto que com cerca de 46 voltas já seriam as suficientes para atingir a marca.
Quando me apercebi disto, não arredei pé do percurso e com boa gestão foi acumulando voltas, para o meu mais recente objectivo.

Com o amanhecer, os “dorminhocos” voltam ao palco principal, e o tempo começa a aquecer. Toda a roupa que fui vestindo à noite vai-se colocando de lado, e volto a dar os primeiros passos de corrida ao fim de algum tempo. Seguindo sempre num grupo de 4 elementos desde meio da noite, foi o grande pilar para continuar em frente. O acumular de quilómetros, começaram a fazer efeito, e já começava a ter algumas mazelas. Os músculos dos gémeos já começavam com algumas queixas, e o pé direito já não tinha a mesma mobilidade. Contudo não era nada que impedia continuar, e sem sofrer um pouco não tinha piada. Já com o sol a meio da subida até o seu pico do dia, atingi a tão desejada meta dos 100 KM. Um objectivo que tinha colocado de lado e afinal foi atingível e concretizado.

Com o aproximar da hora final o bom ambiente nocturno, estava de volta. Bastante apoio junto da meta, e algum extra pelo percurso, que deram alento para as últimas voltas.
O grupo com quem até ali segui, optou que iriam terminar ainda antes do fecho das 24 horas, mas surpreendentemente sentia-me com energia para mais. Obrigado a todos pelo apoio, e uma excelente prestação de todos, mas vou tentar dar mais uma volta.

Com tempo de sobra ainda antes do meio-dia de Domingo, passo na meta, onde muitos já descansavam, e sigo para mais uma e última volta. Seria a de despedida desta edição, e esperar que volte o próximo ano, para repetir a dose.
Coincidência, naquele momento não sabia quantas voltas tinha dado. O meu objectivo para aquele dia já tinha sido concretizado, e estava mais do que satisfeito com isso. Mas inconscientemente sabia que tinha e que queria mais uma.
Aquando a passagem na meta, o speaker anuncia a minha distância e número de voltas, totalizando as 50 voltas. Com grande espanto vi que consegui atingir o meu primeiro marco para este dia, e que obrigatoriamente tive que colocar de lado antes do inicio.


Um verdadeiro teste, passado com sucesso. Consegui evitar lesões e ainda terminar com um sorriso de orelha a orelha na cara.
Como disse inicialmente, esta prova não prima por beleza, pois ao fim de algum tempo estamos fartos de passar no mesmo local, prima sim por toda a envolvência deste dia. Desde o speaker, aos voluntários, aos atletas, aos apoiantes, ao esforço daquele atleta, ao nosso esforço, à resiliência e resistência de cada um. Acima de tudo uma superação individual num dia de grande festa. Não há texto algum que demonstre a natureza e o ambiente destas 24 horas, há sim uma experiência única a ser vivida. 

0 comentários:

Enviar um comentário